“Por favor, tire essas… coisas… de cima da muralha de Jericó.”
Quando terminam os 105 minutos de “Aconteceu Naquela Noite” é extremamente difícil de acreditar que uma das obras-primas de Frank Capra tenha sido costurada com tanta dificuldade, desavenças e má vontade dos envolvidos. Enquanto Clark Gable entrou na produção a contragosto, emprestado pela MGM para puni-lo por sua recusa em aceitar seguidos roteiros da produtora, Claudette Colbert foi um misto de descontentamento e blasé durante as filmagens. A muito contragosto exibiu suas pernas na mais famosa cena do filme e, mesmo após receber o Oscar por sua interpretação, alfinetou que aquele teria sido o pior filme que já fizera. Muito difícil de entender tamanha rejeição por um filme que, do outro lado do processo, cativou ( e cativa ainda, passados mais de 70 anos ) tanto ao público. Mas que pese a facilidade com que a história, roteirizada por Robert Riskin, envolva o público com naturalidade, “Aconteceu Naquela Noite” é um marco por romper com certos parâmetros e dar uma sopro de frescor ao cinema americano na década de 30.
Colbert é a Ellen Andrews, filha de um milionário, rebelde devido aos mimos que sempre recebeu do pai, que foge quando ele a impede de se casar com um piloto, “um mero farsante” na opinião do seu pai. Gable é um jornalista recém-demitido e beberrão, que resolve transformar a milionária em fuga na grande história que o trará de volta ao topo. Enquanto os Estados Unidos procuram por Ellen, Peter, o jornalista, faz de tudo para mantê-la escondida, levando-a como um prêmio particular até Nova Iorque, onde ela pretende se encontrar com o noivo.
Em meio a uma época onde comédia se baseava em peripécias físicas e uma certa inoperância de espaços, Capra rodou o que pode ser considerado o primeiro road-movie da história do cinema. Saiu dos estúdios e levou seus atores para ambientes naturais dos mais variados, que fornecem à trama um constante sabor de novidade. Não teve medo do puritanismo da época e apimentou sua história com referências sexuais ao mostrar como duas pessoas tão diferentes acabam se aproximando, mudando conceitos e se apaixonando. Se o argumento é batido e tema de 10 comédias por ano atualmente, foi um impacto nas platéias de um país que ainda sofria com a recessão que começara 5 anos antes. E Capra, considerado o redentor da nação com suas comédias leves e estórias encorajadoras nos anos difíceis, não esquece disso em nenhum instante. Mesmo a cena com o menino faminto no ônibus, ainda que soando gratuita, mostra que havia a preocupação de fazer o público se enxergar na história de Ellen e Peter – o que já acontecia pelo simples fato de os personagens transitarem por meios comuns ao público da época: ônibus, hotéis de beira de estrada, postos de gasolina isolados e a intervenção de personagens típicos de um país em crise. Entre ladrões, aproveitadores ou pessoas mais preocupadas com o dinheiro, Ellen e Peter evoluem lentamente: ela para uma mulher menos mimada e conformada com sua situação, e ele para um típico bon-vivant que não consegue disfarçar seu coração mole.
Ainda que Capra não fosse um diretor de apuros visuais visíveis ao público, tem um domínio absoluto do espaço onde filma sua história. Transita entre vários ambientes mantendo o frescor da história, dominando a atuação de sua dupla de atores e nunca se sobressaindo a eles, deixando claro que o filme pertence a eles e o diretor, no caso, tem apenas a missão de conduzir essa história – e isso é impressionante sabendo que Gable e Capra começaram a rodar o filme sob forte tensão, e só aos poucos foram se aproximando. Ainda que sutilmente, o diretor consegue criar belos planos: um movimento de câmera acompanha a travessia de Ellen em um acampamento rumo ao banheiro enquanto ela cruza com diferentes pessoas de classes bem diferentes à que ela está acostumada a freqüentar. Em outra cena, acompanha o caminhar da dupla por uma estrada momentos antes da mais célebre cena de longe, colocando-os no centro da tela e localizando os dois no cenário de uma rodovia vazia, caminhando como duas pessoas perdidas, mas também com todo o tempo do mundo à disposição, ainda que com os pés doendo. E toda a seqüência em que Ellen descobre seus sentimentos por Peter são uma prova de porque Colbert ganhou o Oscar, ancorada por um belo jogo de sombras que a mostra de camisola, de costas, enquanto, por trás das “muralhas de Jericó” que separam o casal nos hotéis de beira de estrada vemos apenas a sombra de Gable refletida na parede.
Todo o vigor e o ritmo caem um pouco quando o filme se aproxima de seu final, mas Capra sempre gostou de passar boas mensagens ao público, e estórias envolvendo mal-entendidos são um prato cheio para comédias românticas. A screwball commedy que notabilizou o gênero nos anos 30 e 40 deve muito a “Aconteceu Naquela Noite”. Como comédia, consegue ser hilariante – a famosa cena da carona, inúmeras vezes imitada posteriormente, também reserva a mais engraçada cena do filme com o desespero de Gable por não conseguir uma carona – e como retrato de época, contundente: alterna a graça da guerra dos sexos e dos diálogos afiados com uma maturidade surpreendente por parte de seus atores. Não ganhou os cinco oscars principais ( filme, direção, roteiro, ator e atriz ) por mero capricho da Academia, nem conquistou o público e ( posteriormente ) a crítica devido aos prêmios. O meio social que envolve a história de Ellen e Peter e os microcosmos formados ao longo da trajetória de ambos – especialmente dentro do ônibus – deram combustível para Capra exercitar o desfile de caráter e moral que tanto bem faria ao povo americano em seus filmes posteriores. Nenhum deles, entretanto, com tanta maturidade e ritmo como aqui. E Colbert podia até preferir a Cleópatra que ela protagonizou no mesmo ano, mas estava errada: em uma profissão que dependia da paixão do público para manter suas estrelas, “Aconteceu Naquela Noite” foi o maior exemplo de como os caprichos do cinema às vezes podem acabar criando jóias inigualáveis.
Texto escrito em julho de 2008