Ochoque que Beleza Americana causou em parte do público e até na indústria cinematográfica norte-americana, em 1999, rima com o mesmo tipo de hipocrisia que o roteiro de Alan Ball usa e abusa. Afinal, o filme de Sam Mendes não inventou a roda. Chamá-lo de revolucionário ou inovador é desconhecer que ele não inovou necessariamente o melodrama contemporâneo, tampouco o olhar ácido para o seio da tradicional família de classe média americana ou de sua vida no subúrbio. Décadas antes, a versão original de O Destino Bate à Sua Porta já havia botado abaixo a ilusão da perfeição do american way of life nos gramados e cercas brancas dos subúrbios. Bem antes do filme de Mendes, portanto, esse objeto já havia sido alvo do olhar de cineastas como Douglas Sirk, e mesmo um ou dois anos antes, de Todd Solondz e Ang Lee. O olhar a esse tema voltaria a ser direcionado posteriormente, e de forma diferente, pelo próprio Mendes, por Curtis Hanson e Todd Haynes, entre outros. Mas a receita usada por Ball e Mendes em 1999 conjugou em apenas uma obra uma série de temas de forma tão ácida e direta que, vindo de um grande estúdio e assinada por um diretor iniciante, deixou marcas na produção cinematográfica daquele ano e é lembrado ainda hoje.
Aliás, Beleza Americana não se enquadra sequer nas definições de um melodrama clássico, como os que Hollywood tão bem produziu na metade do século passado. O melodrama tradicional tem certos modelos estruturais que vêm desde sua popularização na literatura. Opõe personagens que representam valores bem definidos, normalmente o vício e a virtude. Alterna momentos de desolação extrema com outros de euforia ampla, muito rapidamente, transformando a linha narrativa num eletrocardiograma constante, renovando também de forma constante a atenção da plateia. Por estar continuamente suprimindo o bem, o lado do mal costuma ser mais dinâmico — por isso, para muitos, mais interessante. Gira habitualmente entre dois temas: a reparação de uma injustiça ou a busca pela felicidade amorosa. Nenhum desses aspectos formulaicos conduz a narrativa escrita por Alan Ball.
A história post-mortem do medíocre Lester Burnham — na definição perfeita de Roger Ebert, um homem “que não é amado pela filha, é desprezado pela esposa e considerado desnecessário no trabalho” — dialoga com a busca pelo ideal de riqueza material entranhado na cultura norte-americana, uma ideia de um “perfeccionismo Emersoniano” articulado por Stanley Cavell, o ideal de que se deve sempre buscar por um verdadeiro “eu” não alcançado, mas atingível. Traz um olhar ácido sobre o conformismo com o ideal de realização pessoal materialista, mas nesse caldeirão estão as relações familiares, a busca por aceitação pública, a repressão sexual e sobretudo a forma como continuamente o hábito de julgar e observar os outros nos importa mais do que o de observar, mais de perto, a nós mesmos. Aqui, é um filme que permite uma releitura interessante depois desse tempo, já que seus personagens observam a vida alheia pelo frame limitado de suas janelas, fazendo suas suposições, um hábito que hoje se reconfigura pelo olhar também limitado e raso dos comportamentos vistos pela tela (qualquer uma delas) das redes sociais. Qualquer estudo sobre alteridade digital e a idealização de uma persona ideal nas redes sociais se abraça fácil com o que o filme de Mendes nos mostra.
Visualmente, os méritos de Mendes na da construção de seu filme giram em torno da lógica sutil como ele apresenta alguns de seus personagens e desenvolve seus temas. Por exemplo, a primeira vez que vemos sua filha é pelas lentes da câmera de Ricky, enquanto Carolyn é vista junto de suas rosas, as American Beautys perfeitas, bonitas, porém sem perfume, uma perfeita alusão à superficialidade e hipocrisia da sociedade americana conservadora. A mãe de Ricky nos é mostrada quando ele lembra a ela que não gosta de comer o bacon que ela recém fritou. Seu olhar perdido enquanto diz que “esqueceu” já nos apresenta uma personagem perdida, sem rumo, enquanto seu pai pragueja contra o mundo contemporâneo lendo seu jornal e em breve verá seu filho respondendo a suas falas como um bem treinado — e fingido — soldado.
Quanto a Lester temos algo muito interessante: na primeira vez que o vemos, ele está vivo, porém parece morto, jogado em uma cama, sem companhia ao seu lado. Na última vez que vemos seu rosto, ele está morto, porém parece mais vivo do que estava antes. E é particularmente bonita a forma como Wes Bentley se debruça para observar os olhos perdidos de Lester, complementando o que ele diz muito antes a Jane, sobre seu hábito de filmar pássaros mortos ou mesmo a moradora de rua que ele viu morrer congelada. “Quando se vê algo assim, é como se Deus estivesse nos olhando por um segundo. E, se prestar atenção, pode fazer o mesmo”. Ali, pela primeira vez, Ricky contempla o olhar de Deus sem o filtro de uma câmera. E sorri.
Já no primeiro plano, aliás, se constrói uma ideia de “idealização versus realidade”, quando vemos, de cima, a organização metódica e repetitiva do bairro onde Lester mora, com suas árvores ordenadas, quarteirões similares e casas repetitivas, enquanto a trilha sonora de Thomas Newman engata uma série de notas que se repetem sucessivamente, fortalecendo essa ideia de organização em série — e, claro, o filme se encerra com o mesmo plano em movimento inverso. Esse perfeccionismo formal se percebe na direção de arte e na fotografia, porque há um interesse em construir simetria ao apresentar o interior desses ambientes. É uma dicotomia: enquanto há simetria no espaço, simbolizando a busca por equilíbrio e por ordem, há total falta de sintonia nos elementos que se movem por dentro dele. A aparente ordem, portanto, é mais um embrulho vazio.
Já as rosas, o mais conhecido motif do filme, são sempre vermelhas, associadas a ambos, paixão e violência. E há o duplo sentido de seu uso, já que, se para Lester elas surgem relacionadas à Angela (paixão), elas também são cultivadas por sua esposa, o que por si só expõe a busca de Lester por substituir a paixão juvenil dos tempos em que conheceu Carolyn — a transferência do desejo sexual de uma para outra. Mas também aponta para uma corrente de acontecimentos que irão levar à sua morte: foi a paixão por Angela, afinal, que deu início a todo seu processo de redescoberta, e cada mínimo ato a partir de então vai contribuir para sua morte: a busca pelo corpo perfeito, a filmagem feita pelo vizinho, a relação comercial entre os dois, a desconfiança da relação homossexual e seu assassinato.
A simbologia das flores, cuja espécie justifica o título (aparentemente perfeitas e sem espinhos, porém sem perfume), acompanha toda a trajetória do personagem, continuamente surgindo em cena, evoluindo da luxúria e da paixão para a violência, e não por acaso as flores são a última coisa que vemos antes do sangue manchar a parede de sua cozinha. Paixão, luxúria e punição pela violência.
A recepção a Beleza Americana não foi unânime. Houve quem criticasse o filme por sua misoginia, questionando os motivos de Carolyn — por não suportar a postura derrotista de Lester — ser representada como a conformista vilã dessa estrutura familiar imperfeita. Já houve quem o analisasse sob o ponto de vista gnóstico e o chamasse de filme “alquímico”. Há quem tenha o filme sob o aspecto da pedofilia, criticando o uso da iconografia de Lolita como o ideal sexual do homem americano na crise da meia idade. É o tipo de abordagem que vai além de olhar para o filme em si, mas para as ideias que ele suscita, algo que permite que os filmes, de forma geral, sempre retornem como objeto de discussão de uma sociedade tão mutável. Mas é o tipo de olhar que eu desconsidero para analisar a obra em si, porque se recusa a aceitar o discurso que ela entrega, preferindo aludir ao discurso que ela “deveria ter entregue”.
Quase todos, em Beleza Americana, buscam alguma coisa, mas acabam desistindo ou se frustrando. Jane quer peitos novos, mas ela desiste disso quando percebe que o que tem é suficiente para o namorado que, enfim, ela encontra. Angela constrói uma persona sexualmente ativa para ser aceita (uma espécie de busca por alteridade em tempos pré-internet), mas quando confrontada com quem ela nunca foi, se revela apenas uma garotinha insegura. Carolyn quer conquistar vitória material e profissional, mas não tem competência para isso. O coronel quer um mundo regido pela ordem e pela disciplina, mas falha ao tentar fazer isso em sua própria casa, expondo o quanto sua família é um fracasso. No caso do coronel, o fracasso é ainda maior porque ele não cai sozinho, já que sequer percebe que sua maior derrota está longe de seu filho: é a esposa catatônica e perdida. Apenas Ricky e Lester, de certa forma, ao abdicarem da busca materialista e da aceitação alheia, supostamente encontram sua felicidade.
Tudo isso pode soar moralista para alguns, até brega. O filme recebeu críticas ao final, quando Lester enumera as verdadeiras riquezas da vida, apontando uma série de pequenos momentos, emocionais ou materiais, que casam com a ideia da vida ideal no subúrbio, o que constituiria a real verdade e a beleza da vida. Qualquer criticismo, segundo essas críticas, perderiam sua validade perante essa tentativa ingênua de pregar uma esperança. Mas eu defendo que toda a construção anterior é não apenas formalmente, mas tematicamente, muito mais duradoura do que essa falsa sensação de esperança escancarada no sorriso de Lester Burnham pouco antes de morrer. O roteiro de Ball constrói um sideshadow anunciando a morte do protagonista e desenvolvendo, uma série de pequenos arcos que possam abrir inúmeras possibilidades ao público a respeito do autor do assassinato (a gravação de Ricky e Jane, Ricky com as chaves do armário de armas do pai, Carolyn aprendendo a atirar). É um recurso narrativo primário bem feito, mas que se constrói por meio de um roteiro que desenvolve tanto tematicamente que, 20 anos depois, pouco ou nada disso é lembrado. A base de múltiplos temas e a acidez sobre a qual se assenta o “who’s going to do it” do assassinato de Lester é muito mais perene e marcante.
Leituras complementares:
How well has american beauty aged?
por Richard Voeltz