O Irlandês: o tempo, as escolhas e suas consequências

Umdos livros que eu mais indico a qualquer cinéfilo é “Conversas com Scorsese”, de Richard Schickel. Aqui, Scorsese fala num papo de alto nível sobre todos seus filmes, seus traumas, temas, frustrações, influências. Ali estão também temas como direção de atores, montagem, cores, conservação de filmes, música e a passagem do tempo. É um documento precioso para entender a mente do diretor.

Já ali, antes de 2010, Schickel pergunta a Scorsese, enquanto conversam sobre “Cassino”, se ele um dia voltaria a esse universo. Em outro momento da entrevista, ele já havia dito que a violenta cena em que Nicky, personagem de Joe Pesci em “Cassino”, é traído pelos seus amigos e enterrado vivo, seria sua última incursão. “Chega” diz ele, exclamando que já havia dito o que precisava, e que a força daquela cena bastava. Mais adiante, porém, ele confessa o que o faria voltar a esse “mundo”: a perspectiva de alguém com 70 anos olhando para trás.

Existe muito de tudo o que Scorsese fez na carreira em “O Irlandês”, e não poderia ser diferente, afinal, muitos dos temas que moveram sua vida — não apenas sua filmografia — estão presentes aqui. A violência, a culpa e o castigo e a inconstância das relações de companheirismo não poderiam deixar de estar presentes, mas não vejo como uma simples repetição de clichês ou um “mais do mesmo” na carreira do diretor (e, convenhamos, por mim ele poderia fazer mais 10 filmes sobre máfia e continuariam sendo melhor do que a maior parte do que é feito hoje em qualquer tema). Aliás, acho que há muitos comentários sobre a repetição de TEMAS (talvez poucos percebam que para além do tema há a abordagem que se faz dele) e poderiam haver mais olhares para a FORMA como tudo é abordado, porque em “O Irlandês”, a forma e o conteúdo estão inseparáveis. O primeiro espelha o segundo, e tecnicamente Scorsese dá uma aula sobre como pensar o papel da câmera. Vou falar a partir das seguintes abordagens: o narrador; o tempo (e o tempo narrativo), o papel das mulheres, a personalidade do protagonista, o ritmo e os discursos simbólicos presentes nas escolhas de enquadramento, principalmente, e nas repetições.

A VIAGEM COMO UMA METÁFORA

Como se conta uma história que percorre décadas? Obviamente há inúmeras maneiras de fazer isso. Você pode contar uma história linear, a maneira mais habitual. Você pode começar com alguém no tempo presente e retomar tudo, como um flashback. Ocasionalmente, esse narrador do presente pode aparecer de tempos em tempos comentando a história. “O Irlandês” usa desse recurso, mas vai além das opções mais óbvias. Ele insere um terceiro tempo narrativo que é “perseguido” pelos flashbacks, até que eles se tornem um só, e ele funciona como uma metáfora para o “caminho” percorrido por Frank Sheeran até a morte de Jimmy Hoffa: a linha temporal da viagem de Frank, Russel e suas esposas até Detroit.

Metafórico: O posto de gasolina está no início da viagem, Detroit está no final. A viagem de Frank e Russel é uma metáfora ao caminho percorrido por eles, desde o momento em que eles se conheceram até o fatídico acerto de contas com Hoffa no “fim da viagem”. Ao longo do filme, essa viagem irá cortar a narrativa e servir de comentário aos flashbacks, até se unir na mesma linha temporal.

Para fugir do habitual flashback de Frank sobre seu passado, o roteiro de Steve Zailian inicia com Hoffa ainda vivo, apesar de nós ainda não conhecermos o personagem nem sabermos dessa informação. E a viagem de Frank e Russ funciona como uma metáfora. Não há motivo razoável para vermos Frank rabiscando no mapa a saída deles da Pensilvânia até Detroit, já que os locais por onde passam não têm influência alguma na história. É uma cena que poderia no máximo demonstrar o estilo organizado do personagem, mas funciona para simbolizar uma espécie de caminho percorrido por Frank, principalmente ao lado de Russel, e que vai conduzir até o momento chave do filme. Não por acaso, também, Frank circula a cidade de Detroit no mapa: é onde ele encontrará Jimmy Hoffa. O momento que definitivamente explica essa linha narrativa como uma espécie de metáfora condutora do flashback é quando Frank aponta para o posto de gasolina onde ambos se conheceram e Russ se surpreende ao ver onde está. Ali é, literalmente, o início do caminho: da viagem deles, e da história de décadas que vamos acompanhar.

UMA ESTRUTURA EM TRÊS TEMPOS

Em termos estruturais, a montagem pensa em sentidos inversos para esses dois blocos que se articulam ao longo do filme (estou desconsiderando os comentários “atuais” do velho Frank no asilo). Ao mesmo tempo em que as passagens que mostram Frank e Russ viajando vão diminuindo de duração (3:30 minutos, 2 minutos, 1:50 minutos, 50 segundos) os flashbacks vão aumentando sua duração (14 minutos, 19 minutos, 66 minutos). Ou seja, o tempo da viagem dos dois no filme vai diminuindo até deixar de existir como bloco isolado. E o flashback vai aumentando até se tornar o tempo presente. Esses dois tempos, então, se unem a partir do momento em que Frank liga para Hoffa e nos encaminhamos para o final do filme. Outra coerência é que na passagem de cada um dos tempos, existe um sentido bem claro — como eu já mencionei, a viagem de carro é um guia para o nosso flashback.

Na primeira passagem, saímos dos dois amigos na estrada surpresos ao verem o posto onde se conheceram para o momento em que isso acontece, nos anos 50. Todo esse primeiro bloco é dedicado a mostrar como isso aconteceu, e termina com os dois conversando na mesa, enquanto Frank diz que Russel gostou dele logo de cara.

RETORNO: “Russel gostou de mim logo de cara”. Anos depois, a amizade permanece.

Voltamos para o carro onde estão os dois casais, décadas depois, ainda juntos, dando continuidade à lógica da formação da amizade entre ambos. Enquanto as mulheres saem para fumar, Russel volta a dormir. Frank olha para ele: cabeça tombada, velho, cheio de rugas, aparência cansada, é a antítese do que era o Russ que ele conheceu: passamos para o tempo passado, e da imagem do Russ cansado no carro vemos Frank mostrar como tudo passava por Russ e como ele era influente. Já temos, aí, um comentário ditado pela montagem sobre um dos temas do filme, a passagem do tempo e a contemplação do que já passou.

SEGUNDA PASSAGEM: do Russel envelhecido e curvado, para a lembrança do homem “a quem todos consultavam”.
O RETORNO: a troca de esposa, e a permanência com ela anos depois. As escolhas do protagonista há muito tempo permanecem com ele até o tempo da narrativa principal.

Nesse segundo bloco de flashback, entramos com Frank no mundo da máfia. Da influência de Russel passando para o começo da perda de sua família, quando sua filha começa a perceber o monstro que tem em casa, até os primeiros assassinatos feitos por Frank e a troca de esposa. É o bloco em que o background principal se consolida e temos a formação da persona do protagonista tal qual veremos ao longo do filme.

Voltamos para mais um pequeno bloco mostrando Russel coletando dívidas e as mulheres fazendo compras. É apenas um comentário sobre como Russel continua influente, e uma vez que no final do último flashback temos a fala de Frank dizendo que trocou de esposa, ver ele ainda com a mulher com que casou naquela época e ainda ao lado de Russel reforça suas escolhas de vida feitas décadas atrás.

O terceiro flashback é o mais longo. Percorre um terço do filme, e é o coração da obra: é onde Frank se envolve com Hoffa, estabelece sua relação, onde os conflitos são apresentados e se intensificam e Hoffa acaba sendo preso, aumentando seu conflito com Tony “Pro”. Há uma pequena inserção da viagem nesse momento, em que vemos Frank trocando o pneu enquanto Russel observa de pé. Ele vem logo depois de vermos Frank atuando como presidente de uma das seções do sindicato, uma indicação de como, mesmo detendo autoridade, Frank nunca deixou de servir como uma ferramenta, agindo para quem está acima dele.

Presidente da seção do sindicato: poder? Não. A montagem coloca Frank, na viagem, trocando pneu sob o olhar de Russ. Seja para Hoffa ou para Russ, durante toda a vida Frank foi apenas um peão, uma ferramenta a serviço de algo maior, mesmo quando detinha algum tipo de poder ou influência.
Prenúncio: voltamos á viagem, e vemos Frank olhando desconfiado para Russ ao telefone. Em seguida, vemos Hoffa saindo da prisão. As duas linhas narrativas começam a se aproximar.

Voltamos para a estrada, e temos a menor das inserções da “viagem”: Frank observa Russ falando ao telefone, de longe. Ele sabe que algo está acontecendo. Essa passagem dura menos de um minuto, e voltamos para o passado, para ver Hoffa saindo da prisão. É onde sua situação começa a se complicar com os “capos”, apesar dos muitos avisos que recebe. A última cena desse flashback mostra Frank, preocupado, olhando para Hoffa e a filha dançando na festa em sua homenagem. E então percebemos que já não há distanciamento entre esses tempos: o plano seguinte mostra Frank caminhando, cabisbaixo, para o carro e logo em seguida explicando que a viagem era uma missão de paz, para tentar ajeitar as coisas, mais do que para ir ao casamento. O tempo da viagem e o tempo do flashback estão unidos. A partir daqui, veremos Frank marcando seu encontro com Hoffa e descobrindo, horas depois, o que ele terá de fazer.

Fim da linha: o olhar de Frank para Hoffa e a filha, e no plano seguinte, a última parte da viagem com Russ. Os tempos narrativos se unem.

Aquele mapa rabiscado por ele no início do filme faz mais sentido ainda: desde a saída da Pensilvânia, onde havia aquele posto de gasolina, até chegar em Detroit, que ele circula de forma ostensiva no mapa, todo o caminho percorrido por ele o leva até Detroit, até aquele momento específico que vai marcar sua vida de forma definitiva.

A NARRAÇÃO E AS MULHERES

Um dos temas que mais causaram discussões e celeumas diz respeito à participação e importância das mulheres na narrativa de “O Irlandês”. Scorsese foi acusado de não dar destaque aos papéis femininos. Concordo e discordo.

Primeiro, concordo com a afirmação do distanciamento das personagens femininas, e isso se justifica pelo fato de que a história é narrada por Frank, e a maneira como Frank vê as mulheres é esta: de longe. Em vários momentos, vemos as mulheres lado a lado, conversando, mas não escutamos o que elas dizem, assim como o próprio Frank é alguém que nunca parece se importar ou ouvir o que sua família tem a dizer. Tudo o que sua filha faz, ao longo do filme, é perguntar “onde ele vai”. Não existe troca, não existe diálogo, nem intimidade. Não se percebe um núcleo familiar. Em “Os Bons Companheiros”, a presença feminina é mais forte porque a Karen Hill é uma das narradoras do filme, ao lado do marido, Henry. Natural que ao vermos a história do ponto de vista dela, o papel feminino na história se intensifique.

Distanciamento: como vemos a história sob o ponto de vista de Frank, quase não ouvimos as mulheres. Literalmente, ao contar sua história, ele praticamente não lembra do que eles falavam ou de como ele conversava com elas.

Citando somente OS BONS COMPANHEIROS e CASSINO, filmes com os quais O IRLANDÊS é mais comparado, perceba que nos dois filmes anteriores, a narração tem um sentido diferente do que ela assume aqui. Em ambos os filmes, é uma narração coletiva. Henry Hill e Karen Hill contam sua história, e não há um sentimento de remorso ou confissão. Pelo contrário, há uma certa excitação em lembrar os dias em que ambos alcançaram o poder e tiveram dinheiro. No final do filme, Henry fala diretamente conosco, mas também não há remorso envolvido. Ele lamenta apenas ter se tornado um Zé Ninguém.

Em CASSINO, a narração também é coletiva. Sam e Nicky, desde o início, contam sua história, e também ali não existe nenhum vestígio de remorso ou culpa.

Em O IRLANDÊS, apenas Frank conta a história. É um processo individual, não coletivo. E desde o início, pela forma como ele aparece conversando com um interlocutor misterioso — seria a persona de Charles Brandt, advogado dele que ouviu sua história no asilo em seus últimos anos — e pelo tom, temos a percepção de uma confissão, uma mea-culpa. Ao falar o que fazia, Scorsese mostra, em rápidos segundos, o assassinato de Hoffa, apesar de o público não perceber, já aos dois minutos (o sangue espirrado na parede explica também o “pintar casas” da expressão usada no filme). Nesse momento, a fala dele é de pesar. “Passei a pintar casas…….. pessoalmente.” Ele se refere especificamente a como “pintou a parede da casa” com o sangue de Hoffa… ele mesmo.

“Passei a pintar casas… pessoalmente”. Ao mostrar já aos dois minutos a morte de Hoffa — sem que o público saiba — o roteiro coloca pesar na narração do protagonista, que está dizendo que passou a “pintar de sangue as paredes das casas” e que ELE, pessoalmente, fez isso ao melhor amigo.

Natural, portanto, que as mulheres da narrativa não tenham espaço uma vez que ela é vista pela perspectiva dele — uma simples questão de forma e conteúdo bem aplicados que não tem relação nenhuma com querer ou não dar peso às mulheres na narrativa. Uma coisa é o que queremos: que o ponto de vista feminino tenha mais espaço. Outra coisa é o que o conteúdo pede: na história de Frank, elas infelizmente não tinham espaço. Foi o que contribuiu para que ele perdesse a própria família.

O olhar inquisidor: Frank diz a Russel, em determinado momento, que a filha tem medo dele. Mas é muito provável que, no fundo, ele tenha mais medo da filha e do seu julgamento.

E aqui chegamos à sua filha, Peggy, e à interpretação de Anna Paquin, que tem apenas uma fala ao longo de todo o filme, e discordo totalmente que isso seja um problema. Na verdade, é um trunfo narrativo. Ela é essencial nessa história. Ao interpretar uma filha que não fala com o pai, mas que fala com as outras pessoas, que não sorri para o pai, mas sorri para os outros (ela dançando, rindo e conversando com Hoffa é emblemático em sua construção), Paquin dá vida, apenas com o olhar inquisidor, àquilo que mais assombra o já idoso Frank no asilo. Nada resume melhor essa personagem do que seu diálogo com o pai, o único em todo o filme. Na primeira vez que Peggy, adulta, fala alguma coisa, é uma pergunta.

– Por quê?

Ela se refere à ligação que Frank disse ainda não ter dado para Jo, mas o fato desse ser o único diálogo adulto entre os dois é emblemático. Nessa pergunta, existe mais do que a dúvida sobre os motivos dele ainda não ter ligado para a viúva de Jimmy. Nesse porquê existe um resumo de todos os questionamentos que a jovem faz desde criança sobre a vida criminosa do pai. Como diz outra filha, anos depois, “você não faz ideia do que foi isso para nós.”

“Por quê?” Esse é o único diálogo adulto, a primeira palavra que a adulta Peggy aparece fazendo a Frank, duas vezes. A pergunta tem um sentido no diálogo, mas um outro sentido muito maior no conjunto da narrativa. Talvez seja o diálogo mais importante de todo o filme…

Os diálogos, aliás, revelam-se certeiros para o desenvolvimento da trama. A informação de que Hoffa não gosta de atrasos, quando Frank o conhece, reverbera mais à frente. Quando vemos Hoffa dizer a ele que “nunca sabe o que ele está pensando” compreendemos, também, o motivo dele não desconfiar em nenhum momento do silêncio e da maneira como Frank o recebe no carro no futuro. E o mesmo Hoffa brinca com ele que os italianos todos se chamam Tony. “São todos iguais, qual o problema dessa gente”. Porém Hoffa vê Frank, um irlandês, de forma diferente. Ele não vê Frank como mais um “Tony”. Será surpreendido ao descobrir que Frank é apenas mais um “Tony” que irá traí-lo (o tema da traição entre amigos, aliás, também é caro ao cinema de Scorsese quando aborda a máfia)

ISOLAMENTO E FAMÍLIA

Na relação de Frank com a filha também fica claro o isolamento a que ele submete sua família. Um ato tipicamente familiar representa bem isso: o ato de sentar à mesa.

O almoço familiar, um momento raro: silêncio e desconforto. Mais à frente, a mesa vazia, e Frank sozinho.

Existe apenas um momento em que Frank senta-se à mesa com a família, e o momento é de tensão. As filhas se olham de lado, ninguém fala nada. O momento representa bem a família que conversa mais com os noticiários de TV e Jornal para conhecer o pai do que com ele próprio. Mais adiante, após a morte de Gallo, e após o olhar inquisidor de Peggy, vemos apenas Frank sentado em uma mesa vazia. O grande contraste é que, enquanto esse momento raramente é mostrado — e como é a lembrança dele, pense que é, também, um momento do qual ele pouco se lembra, portanto — o que mais vemos ao longo do filme é ele sentando à mesa com criminosos, em diferentes momentos da vida, em diferentes locais. Um ritual familiar substituído por um ritual de negócios.

O almoço com os criminosos: um momento sempre presente na memória de Frank. O ritual familiar sagrado é um símbolo de como ele trocou prioridades e como isso permanece forte nas suas memórias.

A cena em que as duas famílias estão no boliche mostram, também, o domínio de Scorsese sobre o que está contando. Ele enquadra Frank e Russel sentados no banco de duas maneiras: a câmera os filma de frente, ou por trás. Quando eles falam trivialidades sobre a família, sobre as filhas, sobre a importância disso ou quando Russel brinca com Peggy, a câmera os olha de frente.

Porém, quando eles falam do medo da menina ou dos negócios do sindicato, Scorsese traz a câmera para suas costas, evidenciando que esse lado sombrio não tem relação nenhuma com qualquer momento familiar.

A câmera fala: ao conversarem trivialidades e coisas familiares, vemos os dois de frente. Porém, ao falarem do medo de Peggy, do sindicato e dos negócios, a câmera muda de posição e passamos a observá-los pelas costas.

Da mesma forma, um momento familiar, o batismo de um filho, torna-se um momento de intrusão, em que ele deixa claro que permite que o mundo criminoso invada o círculo familiar — assim como outro momento familiar, o Natal, é “invadido” pela presença de Russel. E não é menos representativo, a maneira como, após a morte de Hoffa, Scorsese filme o casamento — outra celebração familiar — em câmera lenta, pontuando a hipocrisia de todo aquele universo que celebra valores fraternais logo após atos de extrema violência.

Os batismos ao longo do filme mostram a transformação de Frank: do primeiro, restrito à família, aos demais, com a presença sombria do mundo criminoso ao fundo, algo que a filha Peggy desde cedo percebe.
Ao filmar, em câmera lenta, o casamento logo após a morte de Hoffa, Scorsese reforça a hipocrisia e efemeridade das relações pessoais no mundo em que Frank vive,

Os olhares da sua filha mostram o quanto, desde pequena, ela já observa e entende isso, desde o dia em que o pai espanca na frente dela o dono da mercearia. Como bem pontuou o crítico Matheus Fiore, enquanto aqui a violência se torna um momento de terror, em Os Bons Companheiros, por exemplo, o momento em que Henry Hill espanca o vizinho e entrega a arma suja de sangue para a esposa guardar se torna um momento de aceitação: ela sabe no que está se envolvendo e aceita isso. São, portanto, filmes que tratam temas semelhantes de maneira muito diferentes.

Filmes iguais??? Scorsese mostra o horror quando a filha Peggy é apresentada ao mundo violento do pai. Bem diferente do que acontece a Karen, em Os Bons Companheiros (abaixo), que literalmente suja as mãos limpas com o sangue da arma e aceita o universo violento que acaba de conhecer — e o tom do filme passa a ser de deslumbre por sua nova condição, enquanto Peggy convive com a repulsa e o horror ao monstro que ele vê no pai.

Por fim, o isolamento a que Frank se submete deixa seu legado: ele é o último, não sobrou mais ninguém (como mostra o diálogo de um agente federal com ele já nos seus últimos dias), enquanto que, no asilo, é perceptível como ele continua se isolando, agora dos outros moradores do local.

A cobrança chega: isolamento, solidão, afastamento…

Para completar, nada é mais representativo do que ver Frank escolhendo uma gaveta para ser sepultado (ironicamente perto de pessoas com sobrenome e nome — Anthony — italianos) ao lado de pessoas completamente estranhas, esquecido por todos e completamente afastado da sua família….

Descanso eterno ao lado de desconhecidos: só sobrou a Frank escolher uma gaveta vazia ao lado de pessoas estranhas para ser sepultado.

Scorsese ainda pontua esse isolamento de outra forma, numa das últimas cenas, enquanto Frank olha antigas fotografias de família. São várias, mostrando as filhas e esposas. Mas em NENHUMA ele aparece ao lado delas. A única foto em que ele aparece, está ao lado de Russel. Só quem faz companhia à sua família, em uma das fotos, é Jimmy, ao lado de Peggy, reforçando o que o filme já havia demonstrado: que é Jimmy quem estabelece um laço afetivo e com quem Peggy conversa.

“Família”? Ao rever fotos antigas, Frank nunca está ao lado da família (Jimmy sim). A única foto em que ele aparece, ele está ao lado de Russel. Qual família ele escolheu?

SUBSERVIÊNCIA E QUESTIONAMENTO

Frank é um soldado. Um dos aspectos interessantes da composição do personagem é que, ao mesmo tempo que ele está sempre em posição de inferioridade frente aos homens de poder que estão à sua volta, sendo passivo nessas relações, é uma peça ativa e necessária aos negócios dessas relações, o que garante sua importância. Ele deixa claro o papel que irá desempenhar quando fala com Russel sobre o tempo de soldado, em que “levava alguém para a floresta sem questionar porque essas eram as ordens”. É a partir dessa concepção do que é e para que serve o personagem que surgem alguns dos poucos momentos engraçados, quando Jimmy e depois Russel conversam com ele sobre o que fazer com certos personagens, e seu olhar já indica de forma automática um só pensamento: a execução. Eles precisam comentar que “não é disso que estão falando”.

Apresentado como um soldado, Frank deixa claro desde o início sua habilidade de seguir ordens e não questionar.

Não existe, em Frank, nenhum tipo de dúvida ou conflito psicológico quanto à sua posição como matador. Na primeira vez que vemos ele matar alguém a mando dos chefes — o assassinato de Sussurro — o que temos é um ato mecânico, automatizado. A narração que ele faz da escolha das armas e do assassinato de Joe Gallo também indicam um personagem frio e obediente, e exemplifica o porquê de Scorsese ser considerado um exímio utilizador da narração em off. Ele segue a cartilha: o narrador não deve descrever o que eu estou vendo, mas COMENTAR o que estou vendo, e deixar que as imagens completem o sentido. Aliado à câmera fluida, sem cortes, o assassinato de Gallo também é um contraste perfeito com outro assassinato mafioso icônico: a morte de Sollozzo em “O Poderoso Chefão”. Aqui não há vacilo, questionamento ou dúvida: ele entra, vira-se, atira e vai embora.

De quebra a narração nos brinda com a surpresa: ele diz que o atirador pode, se quiser, ir até o banheiro conferir se não há ninguém lá. Quando Frank entra no restaurante, tudo leva a crer que é o que ele vai fazer, mas ele nos surpreende e vira-se, repentinamente, atirando.

DESGLAMOURIZAÇÃO E A PASSAGEM DO TEMPO

Diferente, também, de outros filmes sobre o tema, O IRLANDÊS desglamouriza o que Scorsese fez antes. Não que a ideia dos filmes do diretor é de que o crime compensa. Longe disso: e temática recorrente do diretor, ao falar da máfia, de como após a ascensão e a chegada ao poder sempre haverá a queda, e sempre haverá uma cobrança pelo sucesso É como se o diabo cobrasse o preço pela ascensão meteórica e pela violência. Isso acontece em OS BONS COMPANHEIROS, acontece em CASSINO e acontece também em um filme que eu considero irmão a eles, O LOBO DE WALL STREET: ambos narram histórias de gente que ascendeu, chegou ao poder, experimentou esse poder, se embebedou dele e depois caiu. Os três filmes, em um terreno fértil para a ilegalidade: a máfia, os cassinos e a bolsa de valores.

Acontece que, nesses filmes, somente no declínio desses personagens você sentia o peso desse destino. Em “O Irlandês”, Scorsese faz questão de mostrar, ENQUANTO ELES ESTÃO NO AUGE, que o destino deles será a queda e a morte. Continuamente, a câmera congela e apresenta os personagens, mostrando que todos, invariavelmente, morrerão de maneira violenta. Ao mostrar isso enquanto eles experimentam o auge de suas atividades, ele ajuda a desglamourizar o processo, o que em outros filmes só acontecia no final.

Desglamourização: Scorsese não espera o filme acabar para mostrar que todos precisam pagar seu preço — ele nos mostra isso enquanto eles estão no AUGE

No livro de Schickel, Scorsese diz que cresceu acostumado a cuidar o que falava e o que os outros falavam. Pisava sempre em ovos, em um meio em que a palavra errada pode ser sentença de morte. Em “O Irlandês”, tudo gira em torno de frases como “Ele disse isso?”, “Tem certeza que ele disse isso?” ou “Foi isso mesmo que aconteceu?” Ações e palavras se cobram com sangue. E não deixa de ser triste e irônico que a morte de Jimmy Hoffa se decida justamente na festa em homenagem a Frank — outro momento, aliás, em que ele se encontra isolado, sozinho, distante da família. O olhar dele para o hesitante Russel, parado na pista após falar com Hoffa, é uma declaração, reforçando o quanto o silêncio, os olhares e o tempo da projeção são importantes.

Muito se reclama sobre a duração do filme, mas “O Irlandês” é um filme coerente com seu conteúdo: tem o ritmo da contestação e do olhar para o passado, da reflexão silenciosa de um protagonista que não verbaliza o que sente, mas cujos olhares falam por ele. Repare nos diferentes momentos em que DeNiro apenas contempla Russel, mas não diz nada. Seja por respeito, seja por subserviência, ele engole os questionamentos, e deixa apenas os olhares. A montagem, ao estender esses planos para em seguida nos tirar deles, nos deixa a mesma sensação.

Há inúmeros momentos em que, em outros tempos ou outro filme, Scorsese optaria por fazer uma elipse. Em que diminuiria o tempo dos planos. Aqui, ele os mantém. A cena em que Frank ouve de Russel que acabou o tempo de Hoffa, ou a cena em que ele senta no avião e olha para Russel são bons exemplos. Na primeira, o olhar de DeNiro diz tudo. Na segunda, os segundos de projeção em que apenas vemos Frank olhar para seu mentor, igualmente, tem grande importância. Para muita gente, poderiam ser tirados, mas esses olhares e momentos “esticados”, ao longo do filme, é que moldam a forma que se adapta ao conteúdo da narrativa.

AS PORTAS

Não é novidade para ninguém que as portas funcionam como metáforas no filme. Que as portas fechadas indicam a morte, e as portas entreabertas funcionam como um simbolismo para uma chance de fuga. Na noite em que Hoffa deixa Frank dormir na suíte, deixa a porta entreaberta, uma rima visual que o filme vai recuperar mais adiante. Uma porta que se fecha no momento em que entra na casa onde será morto. Sem coragem de olhar de frente o amigo, Frank o mata pelas costas. Hoffa cai de frente na porta fechada. Não há escapatória, não há saída.

Nas portas entreabertas, a esperança de fuga. Pela porta entreaberta (e pelos noticiários) a única maneira que a filha Peggy tem de conhecer o pai. Frente às portas fechadas, a morte certa (e no caso de Hoffa, a morte covarde porque o amigo não tem coragem de fazer isso encarando-o de frente)

Esse simbolismo surge também de maneira metafórica quando Frank liga para Jo após a morte de Hoffa. Sem conseguir falar direito (a montadora Thelma Schoonmaker usa inclusive um jump cut no início da conversa para evidenciar seu desconforto) ele apenas balbucia algumas palavras e desliga o telefone. A câmera de Scorsese, então, olha para Frank de cima, afastada. Vemos apenas um homem encurvado na cama, cores frias no ambiente, de frente para uma porta fechada. De certa forma, são duas mortes aqui: a morte que ele carregará para sempre, a do melhor amigo, e a morte da filha, já que ele diz que a partir daquele dia a filha nunca mais falaria com ele. A porta fechada aqui tem valor extremamente simbólico.

Para sempre: no cenário de cores melancólicas, a porta fechada indica um fim para coisas sagradas a Frank. O fim violento para uma amizade, que ele vai carregar para o resto da vida, e também o fim da sua relação com a filha, que nunca mais falaria com ele.

Esse simbolismo aparece forte na cena que encerra o filme. Aqui estão resumidos a culpa que ele é condenado a carregar até o fim, o isolamento que lhe restou e a porta entreaberta indicando os traumas que ele carrega em busca de algum tipo de fuga. Não é à toa que na cena que abre o filme, enquanto a câmera percorre o corredor do asilo, passamos por três placas de EXIT. O filme parece ser uma busca por uma saída definitiva desse universo, não sem deixar de construir uma reflexão sobre os temas que Scorsese abordou e glamourizou, sobre o papel da violência em sua filmografia e sobre sua própria filmografia. Sobretudo, de como é possível enganar qualquer pessoa, qualquer amigo, mas jamais será possível enganar o tempo.

As placas indicando a SAÍDA na primeira cena, e a porta entreaberta que encerra o filme: elementos simbólicos que representam uma narrativa de “despedida”, um olhar para o passado e os traumas do personagem

Scorsese sempre disse estar interessado na história de pessoas boas levadas a fazer coisas ruins. Seu protagonista é um espelho do que o atrai na condição humana, e ao mesmo tempo conduz uma narrativa extremamente humana, construída no ritmo da velhice, no tempo da ponderação, no silêncio dos questionamentos e no peso acusatório do olhar…

PS: Esse texto também é uma adequação ao filme. Se você chegou até aqui, provavelmente também viu as três horas do filme sem reclamar de sua duração.

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