O Tesouro de Sierra Madre (1948)

Encarado por alguns como uma aventura, por outros como um western, a história de Dobbs, Curtin e Howard é quase uma parábola, travestida em diversos gêneros. Um veículo para a genialidade de Huston e uma ode a um tempo onde o cinema era mais corajoso e as platéias pareciam ser menos afeitas à soluções fáceis.

Adaptado do romance homônimo de B. Traven, “O Tesouro de Sierra Madre” é um clássico que influenciou uma geração. Notadamente, cineastas como Scorsese, Lucas e Spielberg são fãs fervorosos da obra. Spielberg foi ainda mais longe: nos extras de “Os Caçadores da Arca Perdida”, admite que a criação de Indiana Jones carrega um pouco do Fred Dobbs de Humphrey Bogart. Quem conhece o primeiro filme do arqueólogo de trás para frente vai reconhecer ainda duas “homenagens” do cineasta ao filme de Huston: os sons dos animais nas florestas atravessadas pelo trio de “Tesouro…” e a risada de Dobbs em um momento crucial perto do final do filme foram recriadas idênticas na cena inicial de “Caçadores…”, reproduzindo os sons da floresta peruana e a risada de Belloq quando os índios hovitos partem atrás de Indy pela selva.

Não é difícil entender essa reverência. Mais do que uma aventura, um western ou qualquer gênero que queiram incluir, “O Tesouro de Sierra Madre” é fruto de uma época onde não era preciso apelar ao óbvio para imergir o público no coração da trama. Bogart é Fred Dobbs, americano miserável que vive em uma cidade mexicana à custa de esmolas, sem sorte, trabalho ou talento. Junto com outro desempregado à procura de uma chance, une-se a um velho, Howard, que passou a vida buscando ouro, para tentar a sorte em um garimpo perdido no deserto mexicano.

O roteiro do próprio Huston, fiel ao livro de Traven, pode apresentar os problemas citados acima de denotar uma certa urgência em determinados momentos, com reações inexplicadas e mudanças de temperamento súbitas de seus personagens, mas é um primor por não subestimar a inteligência do público – repare como, para mostrar o cansaço de Dobbs e Curtin, ele coloca o velho Howard tocando gaita ao lado dos dois, que sequer acordam. E a primeira aparição de Howard resume, em poucas palavras, não apenas o tema do filme como também a interpretação de Walter Huston, pai do diretor e merecido vencedor do Oscar de ator coadjuvante em 1949: o velho Howard explica como ganhou mais dinheiro do que poderia contar e, apesar disso, abriga-se num albergue para pobres. Usa o vício pelo jogo para explicar como o ouro pode matar um homem pela cobiça de sempre querer mais, e resume o sentimento em uma frase: “Tudo vai bem enquanto se procura pelo ouro. O problema para os homens é quando ele é encontrado.”

A coragem citada no começo do texto é a de não fazer concessões nem para o público nem para os personagens. “O Tesouro de Sierra Madre” é um conto sobre ambição, cobiça e loucura, personificados magnificamente por Humphrey Bogart, o retrato de um homem miserável por fora e por dentro. À medida que sua alma se envenena, seu aspecto físico externa esse sentimento, até tornar-se uma mera sugestão de um homem que, teoricamente, é extremamente rico e realizado na vida segundo seus planos. Na primeira parte desse ato de cobiça, Huston faz questão de mostrar que a moral de um homem pode suplantar essa ganância – Dobbs e Curtin surram um homem que lhes deve dinheiro em uma cena de luta extremamente realista até para os padrões atuais, mas pegam dele apenas o que ele lhes deve e devolvem o resto. É um comportamento que será testado ao longo de uma árdua jornada pelo interior do território mexicano dominado por bandidos, solidão e areia. Para demonstrar os efeitos dessa jornada, o diretor escancara closes de seus personagens e abusa dos contrastes da fotografia em preto e branco e dos acordes de uma oportuna trilha de Max Steiner, que varia conforme varia, também, o humor e as ambições dos seus personagens, com exceção de Howard. A expressão de indiferença do velho no aperto de mãos de Dobbs e Curtin mostra que será ele o elo de equilíbrio de uma jornada que, ele mesmo avisa, está fadada ao fracasso. Como o próprio Howard diz, há uma diferença entre os homens e suas prioridades. “Os bandidos o matariam pelos seus sapatos, não pelo seu ouro” diz ele, em certo momento, a um incrédulo Dobbs. No mundo árido deste clássico, a cobiça e a ganância são sentimentos destruidores mas tão frágeis quanto areia, que pode ser, literalmente, levada pelo vento.

Texto escrito em agosto de 2006

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