Nunca subestime um gênio, principalmente se o seu nome for Billy Wilder. O que ele faz com o espectador em “Testemunha de Acusação” é um jogo de enganação tão eficiente quanto é afiado seu humor ácido e sarcástico. Mesmo considerado um clássico, esta história de tribunal de 1957 é subestimada por alguns críticos – Ronald Bergman sequer o cita nas duas páginas dedicadas ao diretor em seu famoso guia de cinema, tampouco o cita entre os filmes que devem ser vistos do diretor austríaco. É uma falha a meu ver imperdoável, porque ele consegue, em 15 minutos, transformar um filme que aparentava ser repleto de falhas em uma trama memorável, justificando e enaltecendo o que, a princípio, pareciam ser erros notórios.
Baseado em um pequeno conto de Agatha Christie, a trama de “Testemunha de Acusação” é roteirizada pelo próprio Wilder. Quem conhece seus filmes e seu humor afiado reconhece sua participação no processo logo no primeiro diálogo. ( “Quer eu feche a janela sir Wilfrid?” “Por Deus mulher, quero que feche a sua boca. Se soubesse que falava tanto assim jamais teria saído do meu coma.”). O notável é que Wilder consegue transformar o que parecia ser uma base para o verdadeiro personagem do filme, o advogado doente interpretado brilhantemente por Charles Laughton ( também diretor de um único filme, o clássico “O Mensageiro do Diabo”), no ápice da trama em uma reviravolta surpreendente, sem soar forçado. O advogado de Laughton, sir Wilfrid, é contratado para defender um homem acusado de assassinar uma velha viúva para ficar com seu dinheiro. Seu único álibi é a esposa, Christine, que ele trouxe da Alemanha em tempos de guerra, mas que para Wilfrid e seu sócio é, na verdade, um obstáculo a inocentar seu cliente. Dizer mais da trama seria correr o risco de revelar aspectos importantes que prendem a atenção do espectador. Melhor é falar da habilidade de Wilder em transformar atores e personagens em uma marionete habilmente manejada.
“Mas aqui é a Inglaterra, onde pensei que pessoas inocentes nunca fossem presas e condenadas por crimes que não cometeram.”
“Bem, nós tentamos não tornar isso um hábito.”
Como de praxe, o grande mérito do diretor não são planos fabulosos, seqüências que entraram para a história do cinema ou experimentos narrativos. São os diálogos ( Wilder faz, em muitos momentos, quase um teatro filmado, com câmera estática ). E Laughton está particularmente à vontade recitando as pérolas de ironia, como uma navalha afiada respondendo a cada insinuação ou observação. Nada passa impune ao senso crítico e ao humor do famoso advogado. Algumas dessas pérolas são dignas de entrarem para a uma seleção antológica de bons argumentos ( “Se você fosse mulher senhorita Plimsoll, eu mesmo bateria em você.”) Em meio a momentos importantes do filme, Wilder desvia a atenção para as atitudes fanfarronas de seu advogado, entregando ao público que “Testemunha de Acusação” é menos um tenso filme sobre um julgamento de assassinato e mais um livre exercício que se assemelha, em alguns momentos, a uma comédia de costumes de apenas um personagem. Quando nesse contexto algumas peças parecem fora da engrenagem – a irritante enfermeira ou a testemunha do julgamento que se emociona – o austríaco se encarrega de colocar tudo nos eixos, relegando nosso sir Wilfrid ao segundo plano. Tente adivinhar o final: dificilmente esse caso será solucionado com antecedência, por mais que o filme nos leve a tirar conclusões. E uma frase de sir Wilfrid, antes do anúncio do resultado pelo júri, se encarrega de nos colocar a pulga atrás da orelha – e até mesmo a atuação de Tyrone Power, a mais fraca do elenco, começa a fazer sentido. Nunca subestime um gênio, principalmente se seu nome for Billy Wilder.
Eu deveria falar de Marlene Dietrich, que absorve toda a atenção nos momentos em que aparece, preenchendo a tela, mas seria chover no molhado. Ela é simplesmente magnífica, e ponto final. Como o filme.
Texto escrito em novembro de 2006