Sugestão, personagem e montagem são as palavras que me vêem à cabeça quando preciso definir de forma rápida Tubarão, filme que, além dos méritos técnicos e artísticos, tem lugar assegurado na história do cinema por ser elemento chave numa das maiores transformações da indústria em todos os tempos.
Adaptado de um best-seller de Peter Benchley lançado dois anos antes, o filme foi entregue a um jovem Steven Spielberg, que, na época, entre gravações de episódios de séries televisivas, havia dirigido apenas o ótimo suspense “Encurralado”, de 1971, e o subestimado — revi deslumbrado há pouco tempo — “Louca Escapada”, lançado em 1974.
A produção de Tubarão, no entanto, foi terrivelmente complicada, mas não cabe a mim, aqui, replicar o que é possível ler em inúmeros sites e até mesmo “críticas” do filme, ainda que certos aspectos da produção possam ter influenciado em decisões artísticas que trazem consequência no resultado final. A história do xerife de uma pequena comunidade litorânea que precisa enfrentar a ameaça de um tubarão branco agressivo em suas águas e conta com a ajuda de um oceanógrafo e de um velho e insuportável lobo do mar é aquele tipo de filme que, uma vez reconhecidos seus méritos, permanece intocável.
O PODER DA SUGESTÃO: UMA LIÇÃO ANTIGA
É certo que a contribuição da montadora Verna Fields foi fundamental para o sucesso do filme, mas é injusto retirar de Spielberg qualquer mérito, ou atribuir apenas à estratégia utilizada na montagem como mérito para o sucesso do filme. Já que o tubarão mecânico pouco convincente não ajudava, a primeira aparição dele acontece apenas depois de uma hora de filme. Até esse momento, os ataques mostravam, apenas, as reações das vítimas, e cabia à plateia imaginar o que estava acontecendo embaixo d’água.
A estratégia de esconder a fonte do medo é poderosa. Ela já havia sido usada com sucesso por cineastas como Jacques Tourneur nos anos 50, que mascaravam a pobreza de algumas produções baseando-se em uma das mais eficientes máximas do cinema fantástico: o nosso maior medo está naquilo que não vemos. O maior monstro é aquele criado pelas nossas mentes.
Fica claro, porém, que se a estratégia de Fields funciona nesse sentido, Spielberg planejou seu filme a partir do momento em que percebeu que teria que mudar de abordagem, de forma a privilegiar uma das ideias de suspense pregadas por Hitchcock: a da cumplicidade com vilão. Ou seja, deixá-los (os protagonistas) na ignorância, enquanto, deste lado da tela, nós sabemos de tudo o que ocorre.
Essa estratégia segue desde o primeiro ataque até vários momentos da caçada ao tubarão, em alto mar, conduzida por Brody, Hooper e Quint. Mas ele não é refém dessa estratégia: Spielberg deixa de nos mostrar a visão subjetiva do tubarão, como nos ataques anteriores, e adota um modo narrativo que se alterna conforme as suas necessidades. Podemos ser surpreendidos estando ao lado dos três personagens, no barco, quando a intenção é o SUSTO. Mas continuamos sabendo mais do que eles, porém sem a visão escancarada do tubarão — em vez disso, as bóias nos avisam de sua presença. Assim, Spielberg constrói SUSPENSE.
Da mesma forma que a sugestão — e a música, como veremos mais adiante — substituem o tubarão, o filme substitui a presença do animal, também, representando-o com objetos. O graveto que bóia sozinho representando o cachorro devorado ou a bóia furada e ensanguentada, representando o menino morto, são símbolos que denotam o animal pela AUSÊNCIA. Eles representam as vítimas, não o tubarão, mas evocam igualmente a sua presença.
Bem mais direta é a forma como outros objetos são usados, na impossibilidade de mostrar o animal, para representá-lo diretamente, como o pier arrastado para o mar que “persegue” os pescadores, quase uma analogia com a barbatana do tubarão, ou as bóias presas ao seu corpo, que são usadas de forma inteligente na eletrizante sequência final no mar. As bóias, portanto, cumprem uma função que auxilia no suspense.
Na construção desse suspense, a escala ajuda muito ao enfatizar o tamanho da encrenca que os três enfrentam. O plano em plongée em que vemos o tubarão passar ao lado do barco está ali para nos deixar a par de quão pequeno e frágil é aquele transporte. Para ampliar essa sensação de perigo iminente e de fragilidade, no meio do nada, em pleno oceano, há planos detalhe dos personagens quase caindo, escorregando, ou de Quinn, na proa do navio, quase voando sobre as águas, como se a qualquer momento algo pudesse arrancá-lo dali. O “Orca” é um barco pequeno e não está perto de ser seguro contra o inimigo que eles enfrentam. Ter noção disso é essencial para amplificar o poder do suspense em toda essa sequência.
PISTAS e ANTECIPAÇÃO
Spielberg não mostra o Tubarão, mas acrescenta várias cenas que, pouco a pouco, ampliam no público uma espécie de “imagem” mental do animal, que fica flutuando sobre a plateia e vai sendo construída e alimentada, portanto, pelas estratégias de substituição. Tanto idealizamos o “monstro” que fica mais fácil imaginá-lo quando música e outros objetos o identificam para nós.
Formas de evidenciar essa lenta construção da imagem do grande vilão do filme surgem no superclose nas palavras “shark attack” do relatório policial, do video-game Killer Shark ou no enfoque dado às imagens que Brody folheia em um dos livros que usa para se informar sobre seu “inimigo”. Cabe, também, uma pequena pista que o diretor dá ao público quando, rapidamente, mostra um tubarão mordendo o que parece ser um cilindro de oxigênio. Aqui, mais do que dar uma pista, o filme se encarrega de apresentar a ideia de que o animal costuma morder e engolir o que surge na frente — importante, também, ver objetos e placas de carros sendo retirados da barriga do animal aprisionado na metade do filme. Cenas isoladas como essas justificam e quebram nossa descrença quanto ao que ocorre no clímax do filme.
PERSONAGENS: A MAIOR RIQUEZA DE UM ROTEIRO
O roteiro também enfatiza, em seus primeiros 20 minutos, a série de eventos banais que costumam ocupar o dia a dia do xerife de uma pequena cidade costeira cujos maiores problemas para a polícia são moleques quebrando cercas. É o início da construção do arco dramático do personagem de Roy Scheider, que é uma das melhores coisas do filme.
Um dos principais elementos da narrativa no que se refere ao protagonista diz que nos identificamos com um personagem a partir da situação que ele está vivenciando, mais do que, exatamente, por quem ele é ou pelo que pensa. Assim, personagens em situações de desvantagem, lutando contra adversidades ou fragilizados tendem a ter nossa simpatia. Brody é um personagem que, sobretudo, é inteligente, responsável, ético e cumpridor de seus deveres.
Mas também, sendo tudo isso, está enfrentando uma situação de extrema complexidade. É o retrato vivo do contraste e da ironia: odeia água, tem medo de água, não entra na água, mas trabalha em um local cercado de água por todos os lados — um trauma que ele terá que superar, o que compõe uma outra faceta poderosa na construção do protagonista.
É importante para o público estabelecer os laços familiares com o personagem, entender suas fobias e compreender sua rotina habitualmente calma e sem maiores problemas para abraçar, realmente, a posição de se importar e torcer por ele. É interessante reparar como, no ataque que mata o menino Alex, enquanto as pessoas entram na água para tirar seus filhos, o xerife para bruscamente quando termina a areia, e chega, em um momento, a olhar para o chão e dar um passo para trás, para não pisar na água.
A situação em Amity atinge a todos, mas Spielberg deixa claro que, se há um elemento em posição desconfortável, enfrentando os olhares, a cobrança e a responsabilidade, ali, é o xerife.
Na cena imediatamente após o ataque a Alex, há uma reunião com diversas autoridades e comerciantes na prefeitura. O ataque é uma ameaça a uma cidade costeira que depende do turismo, e todos são prejudicados pela ameaça representada pelo tubarão. A série de planos utilizada por Spielberg deixa isso claro, sempre enfocando diversos personagens juntos, compondo um grupo afetado pelas mesmas circunstâncias. Apenas um personagem, no entanto, é enfocado de forma solitária quando confrontado com a ameaça de fechamento das praias: Brody. Todos os olhares se voltam para ele, todos os rostos no quadro estão juntos, focando a ele, e ele aparece solitário — e até a janela gradeada ao lado parece insinuar o quanto ele se encontra pressionado e encurralado.
Há um imenso cuidado do roteiro em continuamente construir nossa identificação com o xerife e mesmo cenas aparentemente banais estão presentes a serviço desse objetivo. Veja, por exemplo, uma cena que busca nossa cumplicidade. Durante a noite, no Orca, Quint e Hooper, após beberem, começam a comparar cicatrizes e a contar histórias de como as conseguiram. Vemos os dois dividindo o quadro, juntos, enquanto, do outro lado, sozinho, o xerife observa, de pé, sorrindo. É então que ele faz menção de entrar na brincadeira, levanta a camisa, passa a mão em uma das suas cicatrizes — que, certamente, foi adquirida de uma forma bem diferente das que Hooper e Quint mostram — e, relutante, desiste, baixando a camisa.
A importância, aqui, está no fato de que APENAS NÓS, espectadores, vimos isso acontecer. É um acontecimento que Brody compartilha apenas conosco, e os outros não percebem. É um plano, portanto, que tem uma razão para existir: ele confidencia apenas para nós que Brody não se julga à altura dos outros, como se ele fosse um estranho ali. Além de não gostar do mar, acha que não pode nem dividir suas experiências, porque elas de nada valem. O legal é que isso vai construindo um personagem que, mesmo em meio a toda essa insegurança e traumas, será aquele que vai decidir tudo e matar o tubarão, amplificando o poder e a catarse da cena clímax do filme.
Outra cena que mostra o cuidado com a construção do personagem e nossa identificação não estava, sequer, no roteiro.
Para estabelecer uma ligação com o público, também, Spielberg se esforça por demonstrar a ligação e a preocupação forte que há entre Brody, a esposa e os filhos. Durante as gravações, Roy Scheider percebeu que o garoto que interpreta seu filho mais novo o imitava durante os intervalos. Aquilo lhe deu a ideia para a cena do jantar, que Spielberg imediatamente aceitou e inseriu, inclusive, na montagem final.
Ela mostra Brody sofrendo e culpando-se pela morte de Alex e pela acusação da mãe do menino. Quando seu filho começa a imitar seus gestos e Brody pede que ele o beije porque “está precisando”, temos o reforço do caráter de um personagem que verdadeiramente se culpa por não ter agido. Mais do que isso: o faz pensar, ao ver o filho imitando-o, sobre que tipo de exemplo ele está dando aos filhos quando se subjuga a outros interesses, em vez de pensar no que é certo a fazer.
Também reforça os laços familiares do xerife, um homem que aparentemente poderia estar distante da família, mas que a coloca acima de tudo. Fará muito sentido mais adiante quando, após o segundo ataque do tubarão, em que ele divide a tela com o imenso animal, mas, ao invés de segui-lo e se preocupar com o Tubarão como todos que surgem na tela, corre na direção oposta, preocupado unicamente com o filho.
Essa relação é tão importante que Spielberg compõe um plano interessantíssimo: faz com que o filho pequeno de Brody divida
a tela com o tubarão, ao fundo, como forma de dizer que essa luta, mais do que nunca, se tornará pessoal. Tão pessoal que é depois do susto passado pelo filho que Brody encara o mar e decide, de uma vez por todas, acabar com seu algoz enfrentando o mar.
Hooper e Quint, parceiros de Brody que constróem uma das mais bem sucedidas químicas entre personagens que o cinema já viu, são personagens opostos ao extremo, uma característica essencial para essa química, e essa diferença é exposta em uma cena simples, mas sintomática: quando, no barco, Quint amassa uma lata de cerveja e olha ameaçadoramente para Hooper, que o encara de forma fixa (mas também irônica) e amassa um copo de… plástico. A cena, simples, aparentemente banal, é uma das mais elogiadas pela renomada e falecida crítica Pauline Kael, que exaltava a riqueza do roteiro e seu cuidado com a composição minimalista do trio de personagens centrais.
A própria aparição de Quint como personagem ativo, também, é quase um resumo de quem ele é: um homem irritante e difícil, porém, provavelmente, necessário naquelas circunstâncias. Ele surge durante o bate-boca na reunião na prefeitura, e o “irritante” de sua personalidade surge pela forma como ele arranha o quadro com o desenho do tubarão para chamar a atenção de todos.
Aí, de forma didática, simples, mas muito elegante, o movimento de câmera de Spielberg fará com que ele, inicialmente uma pessoa a mais na sala, no meio de todos, não apenas cresça — em importância — como se isole dos demais, demonstrando seu papel único na trama. A cena inteira, aliás, é construída de forma a mostrar a comunidade como um grupo significando um só pensamento, e os personagens ativos — Brody e Quint — como elementos diferentes, isolados, sozinhos e distantes desse grupo.
Também é trabalhada, ao longo do filme, a invejavel química do trio de atores que, como poucos no cinema, não apenas se complementam, mas criam um pequeno duelo de personalidades, com seus personagens, que fazem de Tubarão um dos filmes de melhor casting que eu, particularmente, já vi.
A cena da contratação de Quint, por exemplo, trabalha muito bem a construção de uma espécie de divisão no trio de caçadores que irá para alto mar. Claramente, temos Brody e Hopper contra a personalidade difícil e dura de Quint. É Quint, porém, quem está no poder, já que é a ele que os demais vêm pedir ajuda.
Isso fica claro pela forma como, com Quint no mezanino e os outros dois embaixo, temos sua posição de superioridade evidenciada. A disposição dos atores permite, também, deixar dividirem as ações e os planos as duas “metades” que surgem dessa relação: temos continuamente Brody e Hooper divindo a tela, os olhares, a ações e reações, e Quint, sozinho, “enfrentando-os”. De uma forma simples, mas muito bem pensada, a “geografia” desse relacionamento está estabelecida e irá se comprovar durante toda a sequência no mar.
UMA TRILHA SONORA NARRATIVA
Faz parte da estratégia de nos colocar a par daquilo que os protagonistas não sabem, também, o uso primoroso da trilha sonora de John Williams.
À parte da genialidade dos acordes simples da trilha, ela serve como um elemento indicador de veracidade de perigo. Sempre que o tubarão aparecer, ele estará acompanhado da trilha. O diálogo da trilha com o público se intensifica nos momentos em que, aparentemente, o tubarão está para aparecer, mas revela-se como falso alarme. Logo, a plateia absorve de forma inconsciente esse sinal de verdade e passa a ligar as notas da trilha ao verdadeiro tubarão.
É por saber disso, por exemplo, que Spielberg aproveita a criação desse código sonoro para surpreender a plateia mais tarde: na primeira vez que vemos o tubarão com detalhes, ele surge enquanto o xerife Brody joga sangue na água para atraí-lo. O susto no espectador acontece por dois motivos: o primeiro é a riqueza dos diálogos do roteiro de Carl Gottlieb, que soam tão naturais que envolvem o público na discussão entre os três personagens no barco.
O segundo motivo, que evidencia o domínio de Spielberg e Fields no momento da montagem, é a decisão de não inserir, nessa cena, a música de John Williams. O público já está acostumado a ligar a aparição do monstro à música, e, repentinamente, ele surge sem nenhum aviso. Nem para Brody, nem para o público.
O DISCURSO VISUAL E A MISE-EN-SCÈNE
Spielberg não se furta, também, de falar semioticamente ao espectador. É perceptível, por exemplo, o fato de Hooper trazer ao jantar na casa de Brody dois tipos de vinho: branco e tinto. Pois Brody abre e serve, enchendo um copo, o vinho tinto (vermelho como sangue) no momento em que discute com Hooper sobre a decisão de abrir o tubarão capturado naquele dia.
Mais perceptível ainda é o momento da partida de Brody, Hooper e Quint em direção ao mar. A câmera de Spielberg vislumbra o barco do trio, o “Orca”, partindo do cais através de uma moldura criada pela boca aberta de um esqueleto de tubarão.
Pouco depois, a montagem opta por não fazer um corte seco e mesclar a imagem do barco saindo do canal com a água vermelha do sangue jogado por Brody como isca ao tubarão. É emblemática a visão do “Orca” navegando por um mar de sangue.
Mas é interessante, também, analisar mais de perto três cenas em particular: duas pela brilhante construção de sua mise-en-scène pelo posicionamento e movimentação dos atores para a câmera, em longos planos sem cortes, e outra pela mescla de vários elementos importantes numa narrativa audiovisual: enquadramento, montagem, pista e recompensa, movimento de câmera, profundidade…
A primeira cena aparece logo no início do filme, e nela Spielberg constrói sem cortes três sentidos interpretativos a partir da relevância do assunto discutido com os personagens envolvidos. Nela, Brody está na balsa e acabou de ordenar o fechamento das praias. Ao fundo, um carro se aproxima e, quando Brody se coloca do lado esquerdo da tela, ele entra na balsa. Do carro saem diversos personagens ainda desconhecidos do público, mas logo descobrimos que são o prefeito, o médico responsável pela autópsia da primeira vítima, e, provavelmente, vereadores de Amity, ou membros do conselho. A intenção do grupo é pressionar Brody a não interditar as praias, essenciais para a sobrevivência da cidade.
Spielberg demonstra isso visualmente, já que compõe um plano em que Brody aparece espremido no canto da tela e todos os outros personagens compõem o restante do plano, de forma planejada, virados para ele. A pressão sofrida pelo xerife é perceptível visualmente.
Um segundo momento acontece a partir do momento em que o médico informa a Brody que defenderá a ideia de que foi uma hélice que matou a primeira vítima. “Resolvido” esse dilema, os personagens secundários voltam sua atenção para outro lado, “relaxando” a pressão sobre o xerife. Três personagens se aproximam da câmera e se isolam: Brody, o prefeito e o personagem de Carl Gotlieb, roteirista do filme que faz uma ponta.
Rapidamente, eles mantêm a tentativa de convencer Brody, até que, num terceiro momento, o prefeito o puxa para próximo da câmera até que ela se foca apenas nos dois, e o prefeito convence o xerife que, ao enfatizar a palavra “tubarão”, ele provocará pânico no feriado da independência. Nesse momento, todos os demais personagens na balsa são completamente secundários: eles já cumpriram sua função de “acuar” o xerife.
A segunda cena que demonstra o domínio de Spielberg da mise-en-scène está na pressão exercida por Brody e Hooper no prefeito. A cena começa com um plano inteiro conjunto dos três e, sem cortes, faz com que os dois personagens se alternem ao lado do prefeito, claramente representando a pressão sobre o político. Na metade final, Spielberg usa um elemento em segundo plano (o outdoor vandalizado) e posiciona seus atores no plano, com o prefeito pressionado no canto da tela. Única pessoa com poderes para evitar uma tragédia, ele recusa-se a ceder à pressão, e sai de cena. O plano final, com o vazio da tela no local onde ele se encontrava, enfatiza a mensagem: aquele que tem poder para tomar uma decisão não quer fazer nada.
A terceira cena vem logo a seguir, e é uma conjugação de códigos bem aplicados: além da mise-en-scène, de uma montagem primorosa, do uso de elementos cenográficos e recursos técnicos da lente: é a cena da morte do menino Alex.
Spielberg começa a cena apresentando, de cara, três “personagens” importantes por diferentes motivos. Primeiro, a mulher obesa, que divide o plano com o rapaz que brinca com seu cachorro. Quando ela entra na água, a câmera “a abandona” e acompanha o menino, que descobrimos se chamar Alex. Num movimento contínuo, acompanhamos ele pedir à mãe para voltar à água (decisão trágica) e então seguir caminhando. Somos “levados” por ele até Brody, que surge em primeiro plano.
Aqui, Spielberg evita qualquer ênfase maior na cor vermelha, exceto no calção de Alex. Também, faz uso de uma profundidade de campo relativamente ampla para que, contrapondo ao rosto preocupado do xerife, ocupando seu terço direito na tela, percebamos o quão movimentada está a praia — e, consequentemente, o quão nervoso está o xerife.
Não é preciso nenhum diálogo que aponte para o nervosismo. Em uma série genial de jump cuts disfarçados pela passagem de pessoas em frente à câmera, nos aproximamos do xerife e acompanhamos, com ele, a apreensão de um ataque que revela-se falso. A “vítima” seria a primeira pessoa apresentada na cena, a mulher obesa.
Entra em prática a ideia de que esse reconhecimento do público dos personagens envolvidos, mesmo que os secundários e insignificantes, auxilia na compreensão do cenário como um todo. Aqui, também, temos a aplicação do conceito de que a trilha anuncia o ataque: no “falso” ataque visto pelo xerife, não há trilha alguma.
Aliás, não há trilha alguma em toda a cena, exceto o rádio tocando na praia. A sequência prossegue com dois personagens vindo falar com Brody. Ambos colocam-se entre ele e a água.
A câmera revela como o xerife incomoda-se com a presença deles e como seu objetivo é, sempre, ver o que ocorre na praia. Sem dizer nada, Spielberg nos põe a par do quão tenso está o personagem.
Nesse momento, um grupo de crianças resolve ir para a água, e, em cortes rápidos, Spielberg enfatiza as batidas na água — que atrairão o tubarão em direção ao grupo. Outro personagem surgido no início da cena mostra sua função: o rapaz que brincava com o cachorro busca por ele, mas não o encontra. Apenas o graveto que ele buscava para o dono aparece boiando na água. O tubarão já o atacou.
Aí, sim, surge a trilha de John Williams e somos levados, como no início do filme, para baixo d’água. Nos tornamos cúmplices do peixe e sabemos que o ataque é real. E o alvo é o menino Alex.
Quando o ataque acontece, Spielberg reflete a forma como a vida e as ideias de Brody se tornam desconcertadas e até mesmo distorcidas pelo ataque com um movimento criado por Hitchcock, o chamado “efeito vertigo”: a câmera aproxima-se fisicamente o ator, um movimento chamado dolly in, enquanto a lente se afasta num zoom out.
O pânico que se segue mostra o xerife, amedrontado, evitando sequer pisar na água, enquanto as pessoas correm desesperadas. Do meio da multidão, surge a mãe de Alex. Spielberg expõe o isolamento do sofrimento dessa mãe fazendo com que, aos poucos, ela se isole dos outros, até que, em um close, reste apenas seu rosto preocupado no quadro, seguido da bóia ensanguentada usada pelo filho, que surge sobre a praia.
Ouvi, pouco tempo atrás, que a própria sequência inicial é um ótimo exemplo de uma pequena história com começo, meio e fim que funcionaria, sozinha, como um curta, o que não deixa de ser verdade. Como Robert McKee já afirmou, o roteiro é exemplar de diferentes formas, uma delas a de apresentar, desde o início, o que ele chama de “incidente incitante”, aquele momento que muda a vida do protagonista para melhor ou pior e ao qual ele deve reagir para colocar a trama em movimento. O incidente ocorre antes mesmo que possamos conhecer os personagens, mas para acentuar a própria personalidade do xerife, ele reage a esse incidente imediatamente, sem deixar espaços para que a trama se perca em histórias paralelas ou desvios narrativos.
Tubarão completou 40 anos repleto de comemorações, em 2015, em memória a uma nova era no cinema que ele ajudou a inaugurar — a era dos blockbusters, filmes-evento e merchandising. Felizmente, o verdadeiro motivo de o filme ainda residir em nossa memória nem é seu lugar nas estatísticas capitalistas do cinema contemporâneo: é cinema de altíssima qualidade, uma lição de 124 minutos, ou simplesmente, um dos maiores filmes do mundo. E não importa o quanto haja de acidente ou desvio de rota nesse percurso: nada ali é acidental.