Gus Van Sant mostra que, no cinema, teorias e conceitos servem para ampliar possibilidades, e não para reduzi-las.
Poucas coisas são tão fascinantes para quem estuda o cinema do que começar a compreender que, embora as teorias forneçam bases para uma compreensão mais ampla dos processos envolvidos na linguagem cinematográfica — à parte, eternas disputas entre estruturalistas, formalistas, neo-formalistas (um termo que o próprio David Bordwell não digere bem), realistas e afins — elas não precisam ser vistas como ordens ou diretrizes fechadas em si a ponto de exigirem uma tomada de posição radical acerca de seus conceitos. Nenhuma teoria de peso, aliás, fecha-se consigo mesma. Teóricos como Munsterberg e Arnheim, embora datados em muitas de suas considerações, ainda são estudados a partir da concepção de que suas teorias fazem parte de um processo evolutivo — e relacionado ao seu tempo — na verdadeira arte de compreender o cinema.
O que nos leva a entender que um bom filme pode fazer uso, mesmo, de soluções que teóricos consagrados desprezavam. Tomemos, como exemplo, a posição de um dos mais respeitados teóricos do cinema, o precocemente falecido André Bazin, mentor de toda uma geração de jovens franceses que mudou o cinema mundial a partir dos anos 50.
Realista, Bazin não gostava do artifício e da manipulação através da montagem e amava a pureza do cinema enquanto arte da realidade. Por isso, a chamada montagem ideológica de Eisenstein — e todos seus conceitos de choque de atrações a partir das descobertas de Kuleshov e dos formalistas russos — que construía discursos através da sucessão de planos que se chocavam ao invés de se completarem, não era apreciada por Bazin. As descobertas dos russos legaram ao cinema a compreensão de que, mais do que o todo, é a sucessão dos planos que provoca reações na plateia. Quem se acostuma a analisar o cinema sabe muito bem que a sucessão de planos esconde opções criativas e discursivas que podem tanto ser planejadas na pré-produção como descobertas na mesa de edição.
Esse choque de conceitos está presente, por exemplo, em ELEFANTE (Elephant, 2003), do diretor Gus Van Sant. Na busca por um estilo documental como forma de conseguir verossimilhança, Van Sant, ao reencenar o massacre de Columbine, opta por um dos artifícios mais queridos por Bazin, defensor do realismo no cinema: o plano-sequência, a quintessência da ausência de montagem e a pureza absoluta da câmera como testemunha — mesmo que de um momento ensaiado.
Não satisfeito, Van Sant faz uso de outros recursos discursivos para conferir realismo: a opção de os atores não profissionais usarem seus próprios nomes e até em outros códigos não específicos, como a variação na profundidade de campo para tornar os corredores da escola borrões irreconhecíveis, do som isolando a subjetividade dos personagens da vida real ou da trilha, que anuncia a proximidade do ataque fazendo uso de Beethoven para linkar ações que já estão ligadas em uma narrativa não-linear composta de diferentes pontos de vista que se cruzam. Porém, é a profusão de planos-sequência que confere essa sensação documental e de testemunho do filme.
Porém, Van Sant sabe que o caminho para um bom cinema não está em optar por uma corrente teórica ou ideológica. Ele também sabe que, ao contrário do que muitos pensam, a montagem pode estar dentro do próprio plano, através do uso de códigos que se sobrepõem para criar um sentido mais amplo do que a imagem.
Nesse caso, podemos exemplificar com a cena em que a dupla de futuros assassinos Eric (Deulen) e Alex (Frost) recebe, pelo correio, as armas que eles compram para seu ato assassino na escola. Temos um longo plano sem cortes, mas Van Sant alterna duas coisas: sua atenção, dividida entre a TV com um documentário sobre o nazismo e os meninos recebendo as armas e tirando-as da caixa.
Ainda que não tenha cortes, é perceptível como, num mesmo plano, Van Sant propõe que nossa atenção continuamente alterne-se entre a imagem das armas e o som do documentário sobre o nazismo, proferindo uma mensagem clara e que produz o mesmo efeito de um possível uso de cortes, apostando na alternância da imagem dos meninos com as armas e, no plano seguinte, imagens de TV com os nazistas.
Em um dos momentos, quando abrem a caixa, a TV que divide o quadro exibe, também, canhões. Essa “falsa montagem” se encena a partir de opções de enquadramento e som, e não pelo corte.
De outro lado, o diretor também opta pelos efeitos da montagem ideológica proposta por Eisenstein, como forma de preparar o espectador atento para o que está vindo, aí sim usando de cortes para aparentemente separar duas cenas — mas confiando que a percepção de um plano relaciona-se ao plano anterior. Assim, no momento em que os garotos acessam um site para comprar as armas, Van Sant corta para um longo plano de um minuto que mostra nuvens calmas transformando-se em uma tempestade. Uma mensagem clara — e quem não entende essa relação não está, evidentemente, acostumado a tentar compreender a montagem a partir dessa sucessão de ideias expostas plano a plano.
De forma ainda mais bem trabalhada, esse efeito surge quando os meninos levam as novas armas para a garagem e as testam atirando contra uma pilha de lenha. Van Sant mostra as balas destruindo a madeira e corta, repentinamente, para a imagem de Michelle (Kristen Hicks), uma aluna do colégio, que caminha em direção à biblioteca, onde trabalha. A cena para a qual Van Sant corta corresponde ao minuto anterior ao assassinato de Michelle pelos mesmos meninos. O uso de outros códigos — como a cor vermelha no primeiro plano pós-corte e na roupa — amplifica o planejamento do diretor, mas está na sucessão dos planos o bem pensado trabalho de montagem — da madeira destruída pelas balas para a menina, que se tornará a primeira vítima do massacre.
Entre teorias realistas através da pureza do plano-sequência ou teorias baseadas no poder manipulador da montagem, Van Sant entrega um exemplo de como a teoria, longe de cercear, permite amplificar compreensão dos processos que envolvem a arte do cinema.