Das muitas injustiças que o sistema de distribuição de filmes comete no Brasil, uma das maiores é a desvalorização do cinema asiático — principalmente no que diz respeito ao público. Afinal, alguns dos melhores diretores do cinema mundial contemporâneo vêm do oriente; de países como China, Japão, Taiwan e Hong Kong, e poucos têm sequer a chance de ver esses trabalhos na telona. O cinema sul coreano é, hoje, um dos mais criativos e surpreendentes do mundo.
Os grandes filmes de ação do cinema, por exemplo, são feitos do outro lado do mundo, e isso já faz um bom tempo, numa característica que virou referência até mesmo para o cinema americano — o ocidente busca com cada vez mais frequência absorver o poder desses cineastas de encenar a ação sem precisar usufruir dos manjados cortes e planos ultra-rápidos.
Não é preciso sequer recorrer aos grandes mestres do passado em um primeiro momento: Johnnie To (Drug War, Blind Detective, Eleição, Exilados) e Tsui Hark (a trilogia Era uma vez na China, Blade — A Lenda, Taking of Tiger Mountain, O Tempo e a Maré, Sete Espadas), gênios do movimento em seus filmes de ação — e milhares de anos luz à frente dos ocidentais em termos de encenação — ; Kiyoshi Kurosawa (Pulse, Kairo, O Sétimo Código, um média metragem de poucas ambições e ainda assim envolvente), que faz jus ao sobrenome, apesar de não ter parentesco com o mestre japonês; Bong Joon-Ho (Mother, Memórias de um Assassino, O Hospedeiro, Snowpiercer), que fez a travessia para o lado de cá e continuou afiado em termos narrativos e visuais; ou mesmo nomes da geração anterior, como Hou Hsiao-Hsien (Um tempo para viver, um tempo para morrer; Cidade das Tristezas, Flores de Xangai, A Assassina), mestre da composição e ainda em grande forma; Chen Kaige (Terra Amarela, Adeus minha Concubina) e ainda Zhang Yimou (Lanternas Vermelhas, O Caminho para Casa, Herói, O Clã das Adagas Voadoras), de quem sou fã confesso. A lista, enfim, é grande. Boa parte do público, porém, os desconhece.
São todos herdeiros de uma tradição oriental do minimalismo no cuidado de como compor visualmente suas histórias e de como narrar. Basta ver dois vídeos do canal de Tony Zhou sobre como Akira Kurosawa compõe o movimento em seus filmes ou de como trabalha a mise-en-scène (desenvolvendo o que Zou chama de “geometria de cena”) para entender quão meticuloso pode ser o trabalho de criação; uma meticulosidade que tem tudo a ver com a cultura oriental como um todo. E aqui falamos de um cineasta conhecido pela aproximação aos gostos ocidentais. Ao nos debruçarmos de outros cineastas do próprio Japão mas, também, e talvez no nosso caso, principalmente, da China, Honk Kong e Taiwan, isso se acentua ainda mais.
O que nos traz ao cinema de Wong Kar-Wai. Particularmente, vou ficar no exemplo de um filme que entrou em diversas listas de melhores dos anos 2000: a obra-prima Amor à Flor da Pele (Faa yeung nin wa). Me interessa, principalmente, mostrar como Kar-Wai cria através da imagem uma série de metáforas e alegorias para sublinhar a tristeza e beleza dessa história de amor que, despida dos toques e dos beijos, exala romance e tensão sexual. Qualquer análise mais detalhada do filme de Kar -Wai mencionará o uso de certos códigos, como o figurino da personagem principal, que nunca se repete ao longo do filme e faz uso de cores como criação de sentido; da trilha sonora instigante que usa de forma hipnotizante Nat King Cole cantando em castelhano (Aquellos Ojos Verdes e Perhaps, Perhaps, Perhaps) ou da forma como o tempo parece também aprisionar aqueles personagens em eternos ires e vires, na repetição de seus gestos, expostos continuamente em câmera lenta e também aprisionados no tempo, como indicam os relógios que continuamente surgem no filme.
Na história, o senhor Chow (Tony Leung), editor de um jornal de Hong Kong, e sua vizinha, a secretária Su Li-zhen (Maggie Cheung Man-yuk), desconfiam que estão sendo traídos por seus cônjuges. Arrasados pela possibilidade da relação entre os dois pares, os dois acabam se aproximando com forma de expiação em uma relação nunca consumada. Essa expiação chega ao ponto de ambos simularem como agirão quando forem terminar seus relacionamentos. Mas tratam-se de ações nunca levadas adiante, bem como acontece com a atração que eles claramente passam a sentir um pelo outro. O caráter e o sentimento de dever conjugal dos dois, porém, parece sempre estar acima dessa tensão sexual, que se torna quase palpável.
Relações emolduradas
Kar-Wai transforma sua história de amor não assumido na tragédia de duas pessoas, e parece mais interessado em nos mostrar as impossibilidades dramáticas vividas por esses personagens do que aventar qualquer chance de que eles possam superar o abismo sentimental em que se colocam. A forma como trabalha os enquadramentos e o uso do cenário são essenciais para compreender isso.
Para passar sua mensagem, Kar-Wai faz uso de alegorias, uma das mais ricas maneiras de se carregar simbolicamente um objeto — ou opção estética e criativa — em um filme. Vou recorrer adois caras, Joe Boggs e Dennis Petrie, autores de uma obra obrigatória chamada The Art of Watching Films para falar, rapidamente, sobre alegorias.
Não é preciso aqui partir do Big Bang e tentar explicar a origem da humanidade — no caso, conceitos de semiótica, como signo, significado e significante. Basta ao leitor entender que, em uma alegoria, determinados objetos ou opções estéticas podem ser carregados de um significado que vai muito além do próprio objeto. Como os autores dizem:
“Quase tudo pode possuir um significado simbólico em um filme. Em muitas histórias, o cenário tem fortes tons simbólicos. Personagens são com frequência usados simbolicamente, e uma vez que personagens se tornem simbólicos, os conflitos em que eles tomam parte se tornam simbólicos também.”
Eles completam lembrando que “a repetição amplia a significação e o poder simbólico de um objeto a cada aparição.”
Grifei a palavra repetição porque é através dela que Boggs e Petrie categorizam uma das diferentes formas de tornar algo em um filme alegórico. É preciso sempre lembrar que tudo o que vemos em um filme foi — pelo menos nos bons filmes — pensado e planejado para ser visto da forma como estamos vendo. Então, a primeira coisa a se pensar sempre é: por que estou vendo isso da forma — ângulo, enquadramento, posicionamento, cores, etc — como estou vendo? A partir desse questionamento básico, e treinando o olhar, é possível começar a perceber a arte se construindo na tela.
Kar-Wai nos mostra, continuamente, que seus personagens — e todos os que dividem espaços com eles — surgem sempre oprimidos pelo ambiente mostrando-os, por consequência, sufocados e apertados em tela. Assim, o cenário desempenha sua primeira função junto com o enquadramento: ao longo de todo o filme, vemos os personagens através de molduras, construídas por vãos de portas, janelas e corredores. É opção artística de Kar-Wai posicionar sua câmera de forma a construir essa sensação de sufocamento dentro do quadro repetidas vezes, tornando esse tratamento uma alegoria claramente simbólica — e que pode também estar relacionada ao próprio déficit habitacional de Hong Kong e os espaços exíguos nos quais muitos muitos vivem lá.
Relações aprisionadas
Não é apenas nas molduras do cenário que Kar-Wai discursa sobre o sufocamento constante vivido pelos seus personagens. A mais clara alegoria é ainda mais direta: o casal que sofre junto está aprisionado em sua própria incapacidade de reagir e se relacionar, de levar adiante a paixão que sentem. Por isso, o filme usa repetidas vezes a presença das grades ao lado, em frente, atrás e até por sombras em diferentes momentos do filme, ou até mesmo através da janela de um quarto. Se o simbolismo das molduras requer uma atenção maior, o simbolismo presente pelo uso das grades é claro.
Personagens multifacetados
Chow e Su, ao dividirem-se entre a paixão e seus valores morais, duelam internamente e parecem, a todo momento, expôr o conflito entre suas vontades reprimidas. Kar-Wai demonstra como esses personagens multifacetados estão continuamente tendo que dividir suas decisões e vontades através do uso de espelhos que, em diversos momentos, nos mostram que, se num primeiro momento eles parecem ser quem sempre foram, há na verdade dois personagens diferentes dentro de cada um deles: o que eles são e o que gostariam de ser.
Verticalidade oferece equilíbrio
Já mencionei o cuidado habitual dos bons diretores orientais com a composição, muitas vezes buscando a simetria e o equilíbrio. No formato 16:9, com o qual Kar-Wai filma Amor à Flor da Pele, é possível perceber, também, como o design de produção permite transmitir uma curiosa sensação de equilíbrio e beleza na composição dos planos, mesmo sem o uso da simetria.
Como Kar-Wai faz isso? Através do uso de elementos que contrapõem a horizontalidade proporcionada pelo formato, estratégia que resulta neste equilíbrio. Sim, trata-se de um princípio que pertence ao design, mas que pode muito bem ser aplicado em diferentes situações. Vejam na imagem abaixo:
Esses sutis elementos do cenário se repetem ao longo do filme. Como a ambientação continuamente faz uso de espaços fechados, pequenos e enclausurados, permitem também a criação, pelo cenário, de linhas verticais em torno dos personagens que oferecem uma sensação de equilíbrio ao se chocarem com a verticalidade oferecida pelo formato de tela. São portas, janelas, cortinas propositalmente cerradas para criarem vincos, grades, texturas e desenhos que circulam ao redor dos personagens e oferecem uma sensação de equilíbrio e beleza na composição que atinge o espectador, mesmo que a imensa maioria não se dê conta de como o diretor e sua equipe constroem isso.
Rostos escondidos
Em termos narrativos, vale perceber como Kar Wai não faz questão de nos apresentar os causadores tanto do tormento afetivo como da paixão que nasce entre os protagonistas. Nunca enxergamos os rostos dos cônjuges que traem Chow e Su, apenas os vemos de passagem, porque claramente a visualização de seus rostos acabaria criando um novo foco de atenção e comparação que não interessa à narrativa. Nos concentramos apenas nas relações, nos diálogos e memórias de Chow e Su, e isso nos confere até a liberdade de criar, em nossa mente — ou de simplesmente ignorar esse aspecto — como são esses personagens que oferecem o comportamento oposto ao dos protagonistas.
Kar-Wai não está interessado em criar antagonistas, e essa opção ajuda a nos concentrarmos apenas na trama que realmente interessa. Tal opção permite também criar cenas interessantes em que ele nos engana ao apresentar os próprios protagonistas nessa posição, antes de nos revelar que os personagens em tela não são quem pensamos.
É o que ocorre, por exemplo, na cena em que Su parece discutir com seu marido e lhe dá um tapa na cara. Após o tapa, nos é revelado que o homem que aparecia de costas para nós é Chow, “simulando” com Su como ela deve agir quando quiser confrontar seu marido. O tapa, o enquadramento e a “simulação” são metáforas para a própria situação dos dois, nos mostrando quão próximos eles constantemente estão de se tornarem cópias daqueles que lhes causaram tanta dor.
Em um epílogo que respeita a triste tradição das mais belas histórias de amor da literatura, Kar-Wai leva Chow, anos depois, às ruínas de Angkor Wat para realizar uma tradição local: a de que, se um segredo é dito em um buraco das milenares paredes e depois fechado com barro, ele permaneceria eternamente guardado e protegido. A riqueza da construção simbólica de Kar-Wai , também roteirista, do designer de produção Willian Chang e do diretor de fotografia Christopher Doyle, só pode ser compreendida, mesmo, por quem assistir ao filme consciente do uso desses simbolismos, e não através de um texto ilustrado — até porque provavelmente há muitos outros elementos simbólicos envolvendo a mise-en-scéne, movimentos e cores, que poderiam aprofundar uma análise como essa.
O mais belo da maravilhosa construção formal e estética de Amor à Flor da Pele para essa história trágica é que sua sutileza tocante só se compara à poesia em torno desse segredo sussurrado, e da triste consequência de um amor perdido.