Fale em Michael Mann e é grande a possibilidade de que qualquer fã de seu cinema aponte as características estéticas, a ambientação, a importância do meio urbano ou as potentes (gosto desse termo) cenas de ação como primeiras lembranças que vêem à mente. Possivelmente, também, uma lembrança quanto ao uso do som — que eu acho problemática em “Inimigos Públicos”, mas isso é outra história — e o quanto certos aspectos, principalmente em “Fogo contra Fogo”, influenciaram o cinema a partir da metade dos anos 90.
Porém, acho injusto que a lembrança desses predicados deixem de lado outros aspectos do diretor que, formalmente, conduzem as narrativas de seus filmes e os levam a outro patamar, a ponto de justificarem a atribuição de “auteur” que lhe é imposta por muitas pessoas não apenas em torno de suas características estéticas, mas também pelo amplo domínio da linguagem como forma de reforçar seus temas básicos e sua relação como o espectador. Esse texto procura apontar esses aspectos como forma de complementar a discussão em torno da carreira do diretor, que é tema do episódio 29 do podcast Plano Sequência, e vai ser dividido em alguns temas. O principal deles, o cuidado percebido pela decupagem quanto ás relações entre os personagens, base condutora de quase todas as obras do diretor, e depois em diferentes aspectos envolvendo a montagem e a encenação dos diferentes arcos dramáticos, e como sua habilidade com a câmera expõe seu discurso evitando diálogos expositivos, uma das coisas que eu mais gosto em Michael Mann.
A AÇÃO É CONSEQUÊNCIA: O QUE IMPORTA SÃO AS RELAÇÕES
Difícil não lembrar, quando se fala em Michael Mann, do tiroteio em LA de “Fogo contra Fogo”, a sequência na boate Fever em “Colateral” ou a perseguição final de “O Último dos Moicanos”, sequências que exibem o domínio do diretor sobre o espaço e a geografia da ação. Mas a ação, percepção ligada ao nome do diretor, é sempre uma consequência e não um objetivo da narrativa. Interessa mais entender o que leva os personagens até esses momento extremos, que surgem como consequências de suas escolhas. Mesmo uma sequência tão importante como o tiroteio de “Fogo contra Fogo” surge a partir de uma escolha consciente dos personagens, já sabedores de terem a polícia de Los Angeles em seu encalço. Mann, principalmente nos filmes em que também roteiriza, se mostra muito interessado na dinâmica entre esses personagens e suas decisões.
No cinema do diretor, alguns temas emergem de forma sólida:
- a impossibilidade das relações e dos laços afetivos: os ladrões de “Thief” e “Heat”, o motorista de “Colateral”, tão preocupado com seu futuro empreendimento que vê passar sua vida sem alguém ao lado, tendo a mãe internada como um “compromisso diário”, os policiais de “Miami Vice”, cujas relações afetivas se encontram sempre entre as vítimas (no caso de Sonny Burnett, a vítima é a própria relação que não pode se concretizar), a família desmantelada em “The Insider”. Como aponta Mark Steensland em um livro sobre o diretor da série Pockets Essential, são personagens resumidos pelo “romantismo de ser um solitário disciplinado em um mundo que incentiva identidades comunitárias’. As relações afetivas são profundamente afetadas pelas escolhas do mundo profissional. Aqui cabe lembrar, em “Fogo contra Fogo”, que o mundo controlado do grupo de assaltantes desmorona em torno dessas relações: Trejo (Danny Trejo, o que parece ser uma brincadeira) trai o grupo por temer pela vida da esposa, Chris incentiva o roubo arriscado para pagar as dívidas que prejudicam o seu ambiente familiar tumultuado, Neil diverge de sua própria regra (“Nunca estabeleça relações que não possa se desapegar em 30 segundos e deixar para trás”) ao ter que largar Eady para trás (a montagem coloca uma indecisão de 40 segundos na cena final), o que acaba sendo fatal. Como o próprio Mann já disse, é o interesse de observar como se dá a “crise de seres humanos frente a situações extremas”.
O final de Miami Vice é exemplar nesse sentido: enquanto vemos Isabela ir embora, com Sonny observando-a partir, temos uma alternância com Rico no Hospital, ao lado de sua namorada que está em coma. A relação de Sonny/Isabela é impossível, e Trudy é a maior vítima das ações profissionais de Rico. Mas é exemplar como Mann também escolha reforçar a relação entre os dois amigos, algo essencial já que o filme, no seu início, aposta num conhecimento prévio do público, a partir do fato de o filme ser uma adaptação de uma série de sucesso. Após se despedir de Isabela, encerramos o filme com Rico entrando no hospital, uma bela sugestão de como, na impossibilidade de uma vida normal, os personagens se refugiem nessa relação quase familiar de cumplicidade para sobreviver ao que acontece lá fora
- personagens que defendem sua moral, independente de que lado estejam. O mundo muitas vezes não funciona moralmente, o que não significa que os personagens não tenham sua própria moral para defendê-la com unhas e dentes
- a falência do sistema, em diferentes esferas, demonstrado pela corrupção, inoperância ou pelo passado institucional de alguns dos párias e anti-heróis do personagem: o assassino de Colateral, Frank e Neil em “Thief” e “Heat”
- as paisagens principalmente urbanas, interferindo nos personagens, surgindo como representações de como esses personagens são pequenos, engolidos em suas histórias pessoais e pequenas decisões, como partes de uma engrenagem muito maior. Continuamente vemos pequenos lapsos deles com a cidade ao fundo, o mundo exterior interferindo nas vidas individuais (a cidade brilhante deformada pelas lentes na conversa entre Neil e Eady, os closes em partes aleatórias da paisagem urbana na reunião editorial em “The Insider” e outras)
- o deslocamento desses seres frente ao mundo que parece não ter lugar para eles, como é constantemente demonstrado na forma como vemos Frank, em “Profissão:Ladrão” ou Wigand, isolado em sua própria casa ou sozinho no tribunal em que presta seu depoimento juramentado
AS RELAÇÕES E SUA EXPOSIÇÃO VISUAL
Dentro dessa linha de pensamento, portanto, é essencial para Michael Mann dedicar atenção à maneira como vai expor essas relações, em pequenos momentos que, mesmo pouco lembrados, dizem muito sobre suas tramas, talvez até mais do que as cenas de ação em si.
“Profissão: Ladrão”, por exemplo, é um atestado de maturidade surpreendente para um primeiro filme. Ele subverte em parte a ideia dos filmes de assalto, que são criados no esquema de primeiro expor a habilidade dos personagens no que fazem (aqui, a sequência inicial econômica nos diálogos e rica nos detalhes que mostram Frank arrombando um cofre, e em “Heat”, pela sequência de ataque ao carro-forte que mostra o modus operandi e também o profissionalismo frio dos personagens ao matar os guardas a sangue-frio). Boa parte do resto de um filme de assalto habitual é mostrar a preparação para um grande golpe, que usualmente consome o clímax da narrativa. Mas em ambos os filmes citados, o clímax pode até estar estruturado em torno do último golpe, mas seu sucesso ou fracasso está mais relacionado às consequências dele para os personagens do que ao golpe em si — “Fogo contra Fogo” tem mais 50 minutos de filme após o assalto final.
Uma pequena cena em “Profissão: Ladrão” mostra o domínio de Mann sobre esse diálogo pouco percebido da câmera para comentar as relações: quando Frank e Jessie, personagens de James Caan e Tuesday Weld. A cena começa tensa, com uma discussão enquanto ambos se sentam, e progressivamente Mann começa a estabelecer os laços dos personagens pela forma como muda a posição da câmera e como gradualmente a aproxima dos personagens, que também começam a se inclinar um em direção ao outro. Porém, Mann toma o cuidado de mostrar cada um em seu quadro em momentos chave de proximidade. A ausência do outro no campo/contracampo fortalece a impressão de que essa relação nunca vai se consolidar realmente.
Esse cuidado a cenas aparentemente banais é comum na carreira do diretor. Lembro como se fosse hoje das queixas do público e de parte da crítica quanto ao fato de DeNiro e Pacino compartilharem poucos momentos de tela dividindo o mesmo quadro em “Fogo contra Fogo”. Compreensível para o público, mas difícil aceitar que a crítica não veja esse regramento rígido quando aos dois astros como uma forma de ampliar o impacto das cenas em que seus personagens estão frente a frente. A cena da conversa de ambos na cafeteria é um dos grandes momentos do filme, porque expõe de forma clara o fato de serem, de certa forma, personagens-espelho, locados em lados distintos da sociedade, com semelhanças na forma de ver o mundo — porém, diferentes na maneira de reagir ao mundo.
Vincent, por exemplo, está no lado da “boa moral”, está ao lado da lei, e vive para o seu trabalho. Claramente, as ligações pessoais o prejudicam no trabalho, a ponto dele estar em fase de destruição do terceiro casamento. Neil sabe que relações pessoais são péssimas para seu ambiente profissional, e as evita para não passar pelo que Vincent passa. Ironicamente, no entanto, as ligações afetivas de Neil se tornam mais bem resolvidas, mesmo sendo ele um ladrão, que as de Vincent, em tese o “mocinho” dessa equação.
Na cafeteria, em torno deles, há pessoas comuns vivendo suas vidas comuns, a mesma vidinha que Neil ironiza como sendo “de fazer churrasco no final de semana”. Mann economiza nos planos abertos, e estabelece um duelo em que os dois aparecem no quadro, mas sempre um de cada vez ocupando campo e contracampo. À medida que o diálogo avança, os personagens se “aproximam” e a câmera se os coloca mais próximos, mas as escolhas de enquadramento são rigorosamente iguais para os dois. Ninguém leva vantagem, ninguém está maior ou menor nesse embate. É um duelo de equivalentes, e a opção consciente de igualar a forma de ver de um e de outro conota uma preocupação que vem desde antes da cena ser gravada. Não está nem na montagem, está na decupagem, e é estabelecida nas decisões de qual momento do diálogo cortamos de um plano mais distante para um plano mais próximo, gradualmente, estabelecendo a tensão da cena.
O planejamento da decupagem, portanto, não precisa estar apenas em que tipo de enquadramento se planeja mostrar uma cena, plano após plano, mas também em pensar em que momento aquele plano precisa ser encerrado para dar lugar ao próximo, e qual efeito terá o plano seguinte dentro do contexto daquela cena em particular. O exemplo da conversa entre Vincent e Neil pode ser observado, com algumas nuances, em uma cena simples de conversa em “O Informante”: quando Wigand e Bergman se encontram em um restaurante japonês para conversarem. O que parece ser um bate papo amigável é logo levado para outra esfera quando Wigand começa a falar sobre seu pai e Bergman corta a linha de conversa para ir direto ao ponto, visivelmente impaciente. O que temos, então, é uma construção da tensão que leva a conversa ao ponto de um questionar a moral e o comprometimento do outro. Assim como na conversa entre Vincent e Hannah, aqui Mann já prevê enquadramentos que, na aproximação aos personagens, os mostrem enquadrados da mesma maneira. São dois homens com algo a perder, dois homens arriscando, a seu modo, muita coisa, mas um momento em que há um estranhamento entre eles. Especificamente aqui Mann faz uma quebra de convenção, e leva a câmera para o outro lado do eixo em que registra a conversa, em um plano inteiro. Ao inverter o eixo da câmera por um breve instante, para depois levá-la de volta à posição original, ele ajuda a estabelecer esse momento de estranhamento e estremecimento na relação entre os dois, essencial para que ambos consigam superar as adversidades.
Mann sabe, portanto, o quando essa mudança de eixo é significativa para indicar transformação dentro da própria cena, ou de forma ilustrativa ao próprio texto, ou discursando sozinha. Dois momentos específicos nesses mesmos filmes mostram isso. Na conversa de Neil e Eady no bar, quando eles se conhecem, e na audiência de Wigand com Sandefour, todo poderoso da B&S, no momento em que ele é ameaçado e pressionado para assinar um novo acordo de confidencialidade.
No primeiro caso, temos um personagem, Neil, que claramente passou a vida desconfiando de tudo e de todos, herança de sua “formação” na prisão em Folsom (um tema que não é novo para Mann, a falência das instituições na formação do indivíduo, algo que já acontece antes com o Frank de “Profissão: Ladrão”). Sentado junto ao balcão no bar, é abordado por Eady, com uma conversa trivial, à qual reage de forma seca e ríspida. Para registrar esse momento, Mann posiciona a câmera atrás dos personagens, vendo-os pelas costas, quase uma analogia ao personagem que parece sempre olhar por sobre os ombros, à espera de uma traição.
Quando Neil finalmente percebe que a vendedora de livros e designer está apenas interessada em conhecê-la, e quando ele também se interesse pelo que vê em frente, Mann faz um pan para a direita por trás do pescoço de Eady, e muda a posição da câmera. Ela agora passa para o outro lado do balcão, e observa o diálogo dos dois de frente. Despido de desconfianças, é como de nos dissesse que Neil, agora, pode se expor e ser mais natural com ela.
No caso de “O Informante”, a cena é mais complexa porque envolve mais variáveis e desdobramentos. Wigand é chamado ao escritório de Thomas Sandefour, todo poderoso da Brown & Williamson, e já de cara percebemos que o ambiente é hostil a ele quando vemos ele entrar na perspectiva de Sandefour, cuja cabeça ocupa parte do quadro. À frente, não vemos Wigand com clareza: ele é apenas uma mancha, um personagem desfocado entrando no escritório. Ele é, para Sandefour, apenas mais um, sem representatividade.
Sandefour, então começa a falar amenidades, introduzindo a conversa com Wigand, que demonstra incômodo com a simples presença ali. Então Mann usa do mesmo recurso para acenar para o estabelecimento de uma situação hostil a Wigand: movimenta sua câmera, em pan, por trás do personagem, no momento em que Sandefour deixa de rodeios e começa a ameaçar Wigand a respeito do seu acordo de confidencialidade. Qualquer domínio que ele parecesse ter no enquadramento é fantasioso: a imagem seguinte, por exemplo, já o observa na cadeira, mas com a mudança da posição da câmera, vemos atrás dele o principal advogado de Sandefour, que também o ameaça “pelas costas”. Tudo aqui, na construção de Mann, é sinônimo de hostilidade, traição, perigo e sufocamento.
Mann constrói muito bem, ao longo de todo o filme, a sensação de insegurança de Wigand e até de Bergman. No caso de Wigand, as ameaças vão além do ambiente profissional, e é importante para o diretor estabelecer a contínua sensação de que algo está para acontecer, que o personagem está sozinho lutando contra algo muito maior. Não é à toa que, desde a cena acima, não vejamos mais Sandefour, senão por breve momento em uma imagem de arquivo na TV. Ao não expor desnecessariamente o chefe da companhia, Mann ajuda a aumentar seu poder. O antagonismo a Wigand deixa de ser representado por um homem e assume uma ausência de forma que ao mesmo tempo é muito mais poderosa. Os tentáculos da B&W podem estar em qualquer lugar, a ameaça não é somente um homem, uma representação física. A ameaça é uma ideia de invencibilidade do sistema contra o indivíduo. Não é à toa que Wigand, constantemente, é enquadrado com o rosto próximo da câmera olhando por sobre as costas, ou isolado, deslocado, em ambientes frios, escuros ou melancólicos. Ele está sozinho e o sistema é opressor e invisível.
Não é diferente do momento, em “Colateral”, que Max finge ser Vincent e encontra-se com Felix. Nervoso, acuado, ele é mostrado por Mann em um enquadramento que o joga para o canto esquerdo tendo atrás vários capangas de Felix, deixando claro a situação de tensão e perigo que ele corre — ao contrário de Felix, que é enquadrado sem ninguém às suas costas, já que está em seu ambiente e, portanto, protegido.
Se o cenário surge como elemento opressor na casa ainda não montada ou no imenso quadro bucólico atrás de Wigand, em “Fogo contra Fogo” ele serve para ilustrar e complementar os personagens: a casa de Neil, vazia, sem objetos afetivos, sem móveis, com vista para o mar, também vazio de paisagens e pessoas, é um reflexo de seu morador, um homem que precisa de uma vida que possa abandonar rapidamente sem lamentar deixar nada para trás. Diferente de Chris e seu lar repleto de livros, discos e fotos, uma lembrança constante de seu apego á família, independente dos conflitos gerados por sua inabilidade de lidar com o dinheiro. Já Vincent Hannah mora em uma casa de aluguel: ela foi construída pelo ex-marido da esposa. Não é à toa que ao chegar ele sente-se em frente à sua TV em cima da mesa, e não na sala, enquanto discute com a esposa. A TV é tudo o que ele vai levar dali quando a relação se deteriorar.
QUESTÃO DE ESCOLHAS
Uma cena em particular de “Fogo contra Fogo” é emblemática em torno dessa discussão sobre o quanto esse desenvolvimento dos personagens parece pouco percebida: três cenas montadas em sequência, no meio de toda a trama envolvendo a busca da polícia pelos assaltantes. O fato de serem montadas uma após a outra, respeitando uma decupagem semelhante e temas semelhantes, nos leva a interpretar o quanto isso é importante para o filme. No caso são as conversas de Justine e Vincent — em que ele reforça o quão importante é o trabalho e ela reclama da sua distância; de Breedan e Lilian, em que ele lamenta estar no fundo do poço e ela reforça seu orgulho por ele; e de Neil e Eady, onde pela primeira vez vemos ele tentar estabelecer alguma relação, fazendo planos para o futuro. Compreender como os “maus” buscam o afeto e o “bom” o rejeita formula um interessante comentário em cima de tudo o que acontece no final do filme: é quem abdica da família que, no fim, consegue sobreviver ao mundo profissional sujo e perigoso.
Outro comparativo sobre como Vincent leva vantagem sobre Neil por se apartar de seus laços afetivos está no fato de que, com a filha de Justine internada, ele não se sente mal em deixá-la sozinha para voltar ao trabalho. Esse desapego, que destruiu seu terceiro casamento, permite que ele tenha sucesso, já que Neil demora demais para se desapegar de Eady quando a hora de fazer isso surge.
As consequências, portanto, são fruto consciente das escolhas dos personagens. Cheritto (Tom Sizemore) tem a chance de desistir do roubo (ele é, de todos, o que tem a família mais funcional e aparentemente feliz), mas persiste. Neil está convicto de que é perigoso, mas a relação de familiaridade com o grupo o leva a aceitar a súplica de Chris (Val Kilmer). A montagem deixa claro que as escolhas pesarão sobre a família quando coloca cenas desses personagens paralelos em atividades cotidianas, momentos antes de cortar para os ladrões entrando no banco.
É bem interessante, também, como o filme nos mostra duas cenas semelhantes mostrando Vincent consolando uma mãe angustiada. Se na primeira vez é a mãe de uma prostituta assassinada que recebe o abraço e a compreensão de Vincent, na segunda é a própria Justine, desesperada com a tentativa de suicídio da filha (Natalie Portman). É nesses momentos que Vincent demonstra entender o drama e a dor vinda desses laços, apesar dele próprio ser incapaz de estabelecer laços que resistam ao seu mundo violento.
Por fim, na ideia mencionada anteriormente sobre “personagens-espelho”, é reveladora e irônica a sequência final: Vincent persegue Neil até um terreno baldio ao lado do aeroporto. O primeiro elemento importante aqui é a solidão, já que esse momento cabe apenas aos dois, sem outros integrantes, sem parceiros, sem testemunhas, perfeito para sublinhar esses personagens que se identificam e são destinados à solidão.
Não deixa de ser irônico os aviões passarem por cima deles, iluminando tudo, já que o próprio Neil, que olha pra eles, poderia estar a bordo de um deles com Eady, indo embora. E também não deixa de ser irônico que as luzes do aeroporto produzam uma sombra no chão que trai Neil e permite que Vincent o mate. Em termos literais, a sua sombra o matou, uma rima narrativa perfeita com a ideia de ser vencido pelo personagem que também é sua sombra.
Gosto muito como o diretor leva vários elementos de “Fogo contra Fogo” para outros filmes, inclusive em “Colateral”, filme que a cada revisão cresce muito, tanto em termos técnicos envolvendo imagem e som, como na mise-en-scène. A mesma ironia da cena final de “Fogo Contra Fogo” aparece quando Vincent (Tom Cruise) está morrendo e relembra a história que conta a Max (Jamie Foxx) sobre o homem que morreu no metrô e viajou morto por seis horas até que percebessem que não vivia mais: ocupando o frame que mostra Vincent sentado, está o mapa do metrô, como que indicando o caminho que ele vai seguir, morto, nas próximas horas. Essa sensação de aleatoriedade do destino para com Max rima com o pensamento de Vincent, que constantemente questiona a Max o motivo dele se importar com ilustres desconhecidos. Todas as noites, o motorista anda com seu táxi, conhece diferentes pessoas e ignora inúmeros dramas que acontecem em todos os cantos da cidade. A aleatoriedade colocou Vincent no seu caminho e o fez se importar — as imagens da cidade vistas de cima diminuem o táxi de Max e o colocam como mais uma “formiga” naquela selva urbana, assim como outros momentos mostram como as relações dessas personagens são fruto do destino: Max ter largado Annie, Annie ter cruzado com Vincent, Vincent ter entrado no táxi de Max — bem como Vincent e Max terem dividido o elevador com Fanning no hospital. Os diversos frames de personagens deslocados com a cidade os envolvendo reforça e rima com o discurso de “caminhos desconexos’ da cidade confusa e desumanizada que Vincent tanto critica.
Essa desumanização traz à tona outros temas do diretor em outros filmes, particularmente o desapego nas relações de seus personagens: Max, que durante doze anos planeja sozinho sua empresa e não tem tempo para estabelecer laços mais afetivos e transforma o ato de visitar a mãe no hospital em um movimento quase mecânico, e o próprio Vincent, que desenvolveu-se sem laços familiares (ele chega a brincar com isso conversando com Max) e é um solitário. Quando os dois vêem um coyote passando em frente ao carro, em plena cidade, a expressão de ambos é reveladora, mas principalmente de Vincent, que parece se ver no animal, condenado a ser um solitário noturno andando pela cidade como se estivesse fora do seu hábitat. O apego dele a Max e a forma como se desenvolve essa relação entre eles, que pode parecer um ponto fora da curva do roteiro, nesse momento encontra uma explicação: aquela noite parece ser um momento em que o próprio Vincent começa a contestar seu lugar, nada muito diferente de Max, que também se sente deslocado na selva urbana: o som, na cena em que pela primeira vez entra no seu carro, aponta como aquele espaço é seu refúgio, quando todos os gritos, discussões e barulhos dos taxistas em torno dele desaparecem quando ele fecha a porta, logo no início do filme. É uma noite, enfim, de revisão, aprendizado e mudança de rumo para dois personagens que mesmo com moral diferente, têm muito em comum também — e que ecoam boa parte dos temas e dramas do cinema do diretor, que desenvolve esses elementos até em um roteiro que não é seu.
O cinema de Mann pertence aos deslocados, aos coyotes da selva urbana condenados à solidão, preço inevitável a pagar pelos seus talentos. A gente, desse lado, agradece…