Para falar de um dos mais importantes e referenciais livros de cinema, vou começar com uma afirmação instigante dos autores, Gaudreault e Jost: A IMAGEM MOSTRA, MAS NÃO DIZ. Essencialmente, o que vemos não é necessariamente o suficiente para que compreendamos o que ocorre.
Por exemplo: um homem que leva a mão ao peito e fecha os olhos. Está morto? Está dormindo? Está fingindo? Ou quando um personagem olha para um local onde havia um carro, a imagem mostra um local vazio, mas o que ela pode dizer, de acordo com as intenções narrativas, é a sugestão de uma ausência. Para que isso seja percebido, é preciso que a imagem em questão seja posta no contexto da narrativa em que ela se insere.
Em A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA, André Gaudreault e François Jost trabalham, em pormenores, as discussões possíveis acerca de um dos temas mais instigantes da linguagem cinematográfica, justamente os conceitos envolvendo o ato de contar uma história. Se obviamente há semelhanças até conceituais entre as classificações envolvendo tipo de narrativa e identificação de um narrador com a literatura, há no cinema particularidades que pediam uma teoria narratológica própria para a arte do audiovisual.
Para resumir a justificativa do livro, “não há narrativa sem que haja uma instância que narre.”
Mas como identificar o narrador de um filme? Quando temos uma narração em off, isso pode ser simplificado — nem sempre, porém, precisa ser óbvio. Mas e quando não há esse narrador óbvio, como identificamos o tipo de narrativa? Essa narrativa se restringe a certos personagens ou ela é irrestrita? Como se percebe a subjetividade e como isso interfere na nossa compreensão da história? Como se classifica o narrador, e como a compreensão do tipo de narrador influencia na forma que o filme chega até nós? Que instâncias narrativas podem arruinar ou fazer o sucesso de um filme?
Os autores inclusive relacionam o cinema com outras artes, numa simbiose que vai além da óbvia relação com os estudos de narratologia literária. Com o teatro, por exemplo. Diferenciando uma mesma narração no teatro e no cinema, explicam como a simultaneidade do teatro e as opções discursivas da câmera provocam mudanças na forma de narrar uma história, e como tudo isso denota a presença de uma instância situada de algum modo acima das instâncias em primeiro nível, que são os atores; uma instância superior, equivalente ao narrador escritural. Seria o grande imagista, também chamado de “narrador invisível” (ROPARS — WUILLEUMIER, 1972), “enunciador” (CASETTI, 1983, GARDIES, 1988), “narrador implícito”( JOST, 1988), “meganarrador” (GAUDREAULT, 1988).
Alguns autores, até mesmo consagrados, como Bordwell, falam em narrativa do ponto de vista formal, mas não se debruçam sobre o tema com os detalhes de Gaudreault e Jost, que chegam a classificar formas de identificar a temporalidade e o espaço em um filme a partir da frequência, modo e duração de uma narrativa no cinema.
Os autores abraçam vários conceitos interessantíssimos a quem deseja se aprofundar. Explicam como o cinema sonoro cria uma dupla narrativa, muitas vezes reduzida à simples interpretação do que é visual, e como o cinema tem a ganhar quando essa obviedade é contornada, ainda que imagem e som tenham narrativas fortemente imbricadas. E sobram conceitos: a realidade afílmica e a diegese, a narrativa de ficção, o espaço na narrativa fílmica, as relações entre palavra e imagem, auricularização e focalização…
De que ajuda isso? Ajuda a entender de forma clara, por exemplo, como Hitchcock aplicava a focalização nula e a restrição do saber do público e do personagem como forma de introduzir o suspense e prender a atenção do espectador. Ajuda quando você tem realmente interesse de entender por que certas histórias atraem e prendem sua atenção e compreender como as estratégias narrativas do roteiro interferem na sua reação. Isso é compreender cinema.
A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA
Autores: André Gaudreault, François Jost
Editor: UNB
228 páginas