A sequência da Escadaria de Odessa em ENCOURAÇADO POTEMKIN é sempre citada como uma das mais importantes da história do cinema, pela importância para a evolução da montagem no cinema. Quer entender o porquê? Bem didático e fácil, segue abaixo:
O filme é um dos tantos em que Eisenstein praticou postulados dos seus estudos sobre cinema, principalmente dos efeitos da montagem. Diferente do cinema americano, que pregava a ideia de CONTINUIDADE dos planos para esconder o corte, ele defendia o CHOQUE de planos para deixar VISÍVEL a montagem. O filme foi produzido para lembrar os 20 anos de uma revolta de marinheiros contra o regime do Czar, deposto na revolução de 1917, como forma de celebrar o novo regime e enaltecer o poder do proletariado. A cena da escadaria de Odessa é a mais famosa do filme.
Nela, a população apoia a revolta dos marinheiros Potemkin após eles se rebelarem por terem que comer carne estragada. Mas as tropas do Czar aparecem para acabar com o apoio popular e atacam civis, velhos, mulheres e crianças na Escadaria da cidade de Odessa, promovendo um massacre.
A primeira coisa sobre o brilhantismo da cena – estamos em 1925 – é como ela exemplifica a idéia de DIALÉTICA na montagem defendida por Eisenstein. Para entender como isso se dá nessa cena, é preciso entender o básico do conceito de DIALÉTICA: ela é a base da própria formação do conhecimento humano.
Quanto temos uma ideia (tese) e a CHOCAMOS com uma outra ideia (antítese) formamos um novo pensamento, uma nova ideia, uma “conclusão” a partir do que entendemos desse choque. É o que chamamos de SÍNTESE (que então vira uma nova TESE até se chocada…. assim por diante) (+)
Na sequência da escadaria, isso é evidente: quando tempos as duas imagens – os soldados descendo a escada e, em sentido oposto, a população correndo desesperada – criamos uma ideia, a ideia de OPRESSÃO PELO ESTADO. É nossa síntese.
Só que a construção não termina nessa síntese. Quando pegamos essa síntese, fundamentada em nossa mente, e a chocamos com outra cena (pessoas assustadas jogadas ao chão) criamos uma nova ideia (abandono, fraqueza, fragilidade, o povo sem defesa)
Essa construção pode ser sucessivamente. Com a ideia de povo desprotegido e fragilizado, inserimos em seguida uma cena dos soldados disparando. Criamos uma nova ideia: a de brutalidade e covardia do regime
Sucessivamente, a justaposição – ou o CHOQUE – dos planos – não buscam primordialmente a continuidade narrativa, mas passar uma ideia. Sentimos o corte, vemos a presença da montagem, e somos afetados por ela. A montagem SE PERCEBE, não se esconde, como na montagem invisível de Griffith nos EUA.
Outro mérito dessa sequência é como ela, pela montagem, manipula nossas percepção de TEMPO e ESPAÇO. Tempo porque, sem necessariamente mudar a velocidade do filme, o Eisenstein estica o tempo de duração dela, fazendo aquela ação parecer durar uma eternidade, ampliando o choque.
E, ligado a isso, como a montagem manipula o ESPAÇO. A escadaria é imensa, mas ela parece ficar ainda maior. Assim como o massacre parece durar uma eternidade, aqueles degraus parecem nunca acabar, e o povo parece que nunca vai conseguir terminar de correr.
Nessa sequência, se encontram todos os tipos de montagem conceituados por Eisenstein, talvez a mais lembrada de várias classificações, e que serve, inclusive, de base para a classificação usada pelo Marcel Martin e pelo Bettón, que eu uso no meu curso e nas minhas aulas. Nessa sequência, ele aplica todas. A montagem Métrica, em que a duração dos planos, independente do conteúdo deles, influencia na reação do público ao que ocorre. A rítmica, em que o corte é orientado pelo que ocorre no plano em si, pelo movimento dos objetos, pessoas e da ação no quadro.
A montagem TONAL na percepção de como se define a duração dos planos e os cortes a partir do tom emocional, o que culmina na percepção da montagem ATONAL, em que a alternância de todas elas em busca de um efeito com o espectador se obtém pela conjugação de todas as escolhas acima numa só cena.
Sobre a atonal, eu gosto de dizer que ela é o efeito conseguido pela alternância do uso de todas as outras. Uma maneira interessante de não dizer “eu ouço” ou ” eu vejo” como resultado de uma cena, mas, para ambos, uma nova fórmula uniforme que surge no vocabulário do público: ” Eu percebo”
E claro a IDEOLÓGICA, em que o choque de planos diferentes, não necessariamente unidos por causa e consequência, cria uma terceira ideia – algo muito frequente de forma simbólica em outros filmes de Eisenstein, mas aqui percebido pela própria dialética entre POVO x REGIME OPRESSOR.
A cena já foi aludida e homenageada em inúmeros filmes, e não por acaso. Se os conceitos que a gente enxerga nessa única cena se tornaram usuais em filmes de diferentes filmografias e épocas, é prova do quão durável são as constatações aplicadas por Eisenstein aqui, há 99 anos