A fisiologia da percepção

Jean Cocteau, poeta que também criou obras-primas no cinema, como A BELA E A FERA e O SANGUE DE UM POETA, escreveu que ”um filme é uma escrita em imagens“.

O sentido de ”leitura do filme“ é simbólico e tem um viés estruturalista, mas gente como Cocteau ou Marcel Martin estão sendo, a seu modo, quase literais quando aproximam literatura e cinema. Eles deixam de lado aspectos semânticos e gramaticais para falar de como o cinema também permite-se ler quando nós conseguimos ir além da camada mais superficial da história que está sendo contada. Martin, afinal, escreve, literalmente, que ”é necessário aprender a ler um filme“ já que ”qualquer imagem que apareça na tela é mais ou menos simbólica. Uma imagem, sozinha, MOSTRA, não DEMONSTRA“.

No exemplo de INTRIGA INTERNACIONAL, a dialética interna entra em ação ao observarmos os elementos dentro do quadro (1): o horizonte baixo, os homens em posição de oposição, o céu aberto prenunciando o perigo que virá. Na dialética externa (2) está em jogo a relação da montagem, como os planos, um após o outro, se relacionam. Esse princípio de oposição de elementos entre e inter plano é a base do “ver cinema” que nós vamos aprofundar

Martin, ao observar no capítulo introdutório de A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA os aspectos referentes a esse olhar para a obra fílmica aponta sua constituição a partir de dialéticas, de construções de sentido que estão continuamente se renovando na mente do espectador.

Há no filme uma DIALÉTICA INTERNA, na relação entre os objetos do plano, e uma DIALÉTICAEXTERNA, uma relação dada pela montagem e que Martin atribui, com forte valor, à escola soviética em seu pioneirismo. Por conta de seu caráter discursivo amplo, e pela sua sintaxe muito particular de dizer muito ao mesmo tempo, Martin defende que “cada filme tem tantas possibilidades de interpretação quantos forem os espectadores.”

E esse é, talvez, o aspecto mais fascinante do cinema.

ESTRUTURALISMO Em linhas gerais, o estruturalismo é uma corrente de pensamento que busca identificar as estruturas que sustentam todas as coisas. O método, que ganhou força entre os intelectuais, explica como uma estrutura geral se repete em todos os níveis ou em todas as suas partes

A ironia aqui é que sabemos muito bem que devemos aprender a ler antes de podemos tentar gostar ou compreender a literatura, mas tendemos a acreditar, erroneamente, que qualquer pessoa pode ler um filme. Qualquer um pode ver um filme, é verdade. Mas algumas pessoas aprenderam a compreender imagens visuais – fisiológica, etnograficamente e psicologicamente – com muito mais  ofisticação do que outras. Essa evidência confirma a validade da idéia de um triângulo de percepção unindo autor, obra e observador. O observador não é simplesmente um consumidor, mas um participante ativo – ou potencialmente ativo – no processo, como já comentamos.

James Monaco comenta os resultados de um conjunto completo de experimentos fisiológicos, etnográficos e psicológicos que pode demonstrar que vários indivíduos lêem imagens mais ou menos bem de três maneiras diferentes:

INFILTRADO NA KLAN – perceber a inclinação incomum do plano, num ângulo holandês, independente de saber ou não seu nome, é parte de um processo fisiológico. Antes de analisar o filme, o espectador efetivamente precisa “perceber”

❏ FISIOLOGICAMENTE

Quando está em jogo a capacidade do leitor de perceber organizações formais visíveis e seus padrões. A percepção direta do que está em tela, os jogos de volumes, cores, elementos, atores e tudo o que é perceptível formalmente no filme que é visto. Perceber a simetria de um filme pela sua repetição, ou como é proposital o uso de certos padrões de cor, ou como é proposital o ritmo lento de algumas de suas ações fazem parte do processo fisiológico de ler a imagem de um filme.

Em A PAIXÃO DE ANA certas cenas abundam em tons de azul ou de vermelho, destacando-as de outras cenas desse que é o primeiro filme colorido de Bergman

Mesmo que não seja alfabetizado na linguagem cinematográfica, o espectador é capaz de perceber, numa de INFILTRADO NA KLAN o ângulo inclinado dos dois personagens, um contra o outro, e o uso da tela dividida. Ou, na predominância da cor azul em toda uma cena A PAIXÃO DE ANA, de Bergman. São exemplos em que algumas marcas estéticas são mais visíveis, mas qualquer reconhecimento de padrão, ritmo ou elemento formal de forma direta é parte da leitura fisiológica. Essa leitura fisiológica é o passo inicial para que o espectador deixe de ser passivo, alguém que apenas OLHA para o que acontece, e passe a ser ativo, estabelecendo reações e construindo ideias. Para que os próximos passos ocorram, afinal, é preciso fisiológicamente “perceber”, e isso, para muitos espectadores, hoje, pode ser difícil, já que o ato de ver uma obra audiovisual por vezes se dá de maneira automática e insensível, movida pelas reações.

❏  ETNOGRAFICAMENTE

Quando os leitores mais letrados aproveitariam a sua maior experiência e conhecimento geral de uma ampla variedade de convenções visuais culturais para “ler” melhor a imagem. Aqui está a percepção de certos jogos metafóricos, de certas alusões e alegorias que permeiam os filmes. Perceber, pelo conhecimento de convenções externas ao filme, como o filme dialoga de forma intertextual com outros fenômenos, objetos e criações de fora da história propriamente dita. É difícil para quem leu ROBINSON CRUSOÉ não traçar paralelos com a obra quando assiste a NÁUFRAGO, de Robert Zemeckis.

❏ PSICOLOGICAMENTE

Em que os leitores que “leriam” melhor a imagem seriam os que melhor conseguissem assimilar os vários conjuntos de significados que eles perceberam durante a experiência. Aí está, de forma direta, a capacidade do espectador de olhar para além da primeira camada de acontecimentos e tirar impressões a partir do que vê em tela, em conjunto com o que já captou de forma fisiológica e etnográfica.

É assistir AMOR À FLOR DA PELE e perceber, pelo surgimento de relógios espalhados ao longo do filme, de que maneira a obra traz uma mensagem a respeito do tempo fugidio na vida de seus protagonistas, divididos entre a sua moral própria e a maneira como reagem ao que aconteceu com eles na trama.

São três tipos de olhares, portanto, que influenciam na maneira como percebemos e entendemos as imagens: perceber seus arranjos formais, estéticos e visuais; conhecer as convenções culturais e sociais que muitas vezes envolvem relações com outras artes e com a história, e ter a capacidade de assimilar os diferentes significados envolvidos, um processo que tem parte de sua explicação estudada pela semiótica e também envolve um letramento prévio: quanto maior ele for, maior a chance dessa compreensão acontecer de forma mais espontânea.

Outro autor que abordou para a arte, essa capacidade de leitura e assimilação foi ERWIN PANOFSKY, criando até mesmo uma delineação de três diferentes níveis para mostrar como um espectador reage ao que vê – e esse é assunto para outro momento, quando falamos do olhar iconológico para a arte.

(Trecho das páginas 52 e 53 do livro ilustrado do CURSO ONLINE, assunto também abordado em vídeo do curso)

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