O amargo requinte da decadência

Revisitei Pat Garret & Billy the Kid alguns meses atrás de olho em algumas construções simbólicas que representem a elegia de Peckinpah ao gênero que ele tanto moldou quanto desconstruiu, e devo dizer que havia preparado um início bem diferente para falar da obra, que mais de quatro décadas depois alcança um status bem diferente daquele que tinha quando estreou em versões mutiladas após uma filmagem problemática.

A tentação é começar por uma icônica paisagem ao pôr-do-sol em que a morte beija o rosto de um velho ao som de Bob Dylan. Mas há uma cena, justamente aquela que encerra a jornada, que consegue resumir a importância da obra por recorrer, justamente, a uma alusão que representa o próprio gênero.

Se em 1953 George Stevens coloca seu caubói quase mitológico cavalgando rumo ao horizonte e contrapõe as lágrimas de um menino pedindo que ele volte e chamando por “Shane”, vinte anos depois vemos Peckinpah jogar ao dorso de um cavalo um ex-bandido transformado em um bastardo homem da lei que, ao matar o bandido, cavalga rumo ao pôr-do-sol. Sua recompensa, no entanto, não é um pedido de retorno. O menino atrás dele lhe joga excremento de cavalo e pedras, expulsando-o.

A comparação entre esses dois finais separados por duas décadas é a síntese de um oeste que, Peckinpah já havia dito antes em outros dois filmes, só existia na lembrança. Os westerns crepusculares dirigidos por ele fizeram mais do que dar um sopro de vida ao gênero nos tumultuados e transformadores anos 70, responsáveis por destruir a inocência do cinema americano e também por fazê-lo amadurecer formalmente, tematicamente e narrativamente.

Os westerns de Peckinpah iniciaram um processo de desconstrução e desmistificação melancólica — nisso Ebert tinha razão — que Eastwood concluiria quase vinte anos depois. Os caubóis, heróis de outrora, matavam o bandido, mas eram escorraçados com cocô de cavalo. Nada glamouroso.

Uma alusão à obra-prima “Meu Ódio Será Tua Herança” e um brilhante exercício de montagem paralela: galinhas, indefesas, presas, no tiro ao alvo

Não é mera coincidência que Peckinpah inicie seu filme quase repetindo a cena de abertura da obra-prima Meu Ódio Será tua Herança: naquele filme, crianças se posicionavam em torno de um pequeno ringue improvisado para assistirem a formigas devorando um escorpião.

Essa linha delicada entre inocência e selvageria é cara ao diretor. Em Pat Garret… o grupo de Billy the Kid faz tiro ao alvo em galinhas enterradas até o pescoço, sem possibilidades de fuga ou salvação. O que resta daquelas que são alvejadas na cabeça acabam nas mãos de crianças, que saem correndo com elas e rindo. Nada mais lembra as crianças de westerns como Shane, pudicas, inocentes.

De forma geral, Peckinpah construiu sua carreira dentro do gênero pregando o fim de um tempo, as mudanças de um país e, por conseqüência, do próprio gênero. De forma não menos genial, em uma montagem paralela que separa duas ações no tempo, alternamos a visão do grupo de Billy atirando para atingir as galinhas — mas cujas balas elipsam a narrativa e atingem o próprio Pat Garrett, quase trinta anos no futuro. A construção é óbvia e, ainda assim, brilhante. Peckinpah nos mostra a danação do personagem antes de apresentá-lo e nos expor, ao longo do filme, os seus pecados.

“– Parece que os tempos mudaram!”, diz Garret em um encontro com o ex-colega Billy. A visita é uma cortesia, Garret diz ao fora-da-lei que em cinco dias ele começará a caçá-lo.
“– Os tempos talvez, mas não eu” — retruca Billy. Mais adiante, ele lembrará a um de seus colegas que, ironicamente, há pouco tempo ele estava ao lado da lei e Garret era o fugitivo.

O principal mote narrativo do filme de Peckinpah é que o Billy idealizado pelo diretor é um resistente. Ele preserva os velhos valores, resiste ao avanço do progresso, às mudanças. É um romântico e quase um herói dentro dessa diegética clássica do gênero. Tem trânsito livre pelas pradarias, é recebido e tratado com respeito por populares e tem amigos espalhados por todos os lados.

Garret, por sua vez, representa o fim dessas tradições. Está ao lado da lei, mas é o traidor. “Nós rapazes não devíamos ficar uns contra os outros”, brada um dos colegas de Billy pouco antes de ser morto por Garret. E é Billy, o vilão, que não atira em Garret quando tem a chance simplesmente porque “ele é meu amigo”, em suas palavras.

Peckinpah exprime visualmente esse caubói de outros tempos recorrendo, também, a uma construção visual clássica — a do cavaleiro ao pôr-do-sol — mas, como bom “outsider” do sistema de estúdios, reconfigura nossa visão desse personagem. Tudo o que podemos ver nessa marcha idealizada é seu reflexo nas águas de um lago, enquanto o verdadeiro cavaleiro está escondido nas sombras. Não existe, então, diz Peckinpah, nada além de um reflexo do que foi um dia esse herói americano ideal.

O caubói mítico do clássico western americano, aqui, não pode ser visto. Enxergamos apenas uma sombra, um reflexo do que ele foi um dia. É a desmistificação de um gênero caro à própria cinematografia norte-americana.

O culto a essas tradições por parte de quem deveria ser o vilão sinaliza um processo de desconstrução do gênero com o qual Peckinpah recheia praticamente toda sua carreira dentro do western. Ele é explícito em seus roteiros — e aqui mesmo, Garrett exclama, em determinada ocasião, que o país em que eles vivem, da maneira como eles viviam, está morrendo.

Mas Peckinpah não se apóia apenas nessa constatação para transformar Pat Garret & Billy the Kid em um filme que expresse desilusão e decadência. Seus personagens representam visões quase simbióticas. Lee Siegel, em um artigo memorável, lembra que Peckinpah, em uma produção recheada de problemas e sob o olhar de desconfiança do estúdio, não apenas entornava as habituais garrafas de bebida pela manhã, mas também adorava dar tiros para o ar ao final do dia. De forma alusória à própria história, deitava-se na cama durante a noite e chegou a dar tiros em seu próprio reflexo no espelho.

Assassinato ou suicídio? Ao matar Billy, Garrett está matando a si próprio. O tiro que dá no seu próprio reflexo surge, na montagem, no exato momento em que Billy cai morto ao chão.

Peckinpah parecia se ver, em parte, na figura de Garrett, um herói sem louros que, ao matar Billy, estava matando ao que restava do oeste que ele próprio conhecera e, claro, matando a si próprio. Essa construção simbólica também é clara e mais uma vez a montagem ajuda a construir um discurso que os produtores do filme pareciam achar que o público não compreenderia. No momento em que mata Billy, Garret se assusta com seu reflexo no espelho e atira nele. O tiro atinge sua própria imagem no espelho no exato momento em que, em câmera lenta, a cabeça de Billy cai sem vida ao chão. Mais do que um assassinato, praticamente um suicídio.

Construções simbólicas como essas, que autores como Hunt, Monaco, Bordwell e outros tentam teorizar ao público leigo em obras obrigatórias sobre cinema, eram consideradas pelo estúdio como atos falhos. A primeira versão do filme a chegar às telas chegou limada de diversas cenas consideradas essenciais por Peckinpah, sem contar as dezenas de tomadas perdidas para sempre devido a problemas numa lente que só foram percebidas após as filmagens e que o estúdio se negou a autorizar refilmar.

“Não foi no dez, Hoss”. Na desconstrução de elementos essenciais ao gênero, Peckinpah nos lembra que o romantismo faz parte do passado

Esse tratamento pouco romântico e mais lento, no entanto, se assustou o estúdio — e a versão do estúdio não trouxe o retorno esperado também junto á crítica — só ajudaram a fermentar a importância da obra com o tempo, principalmente após a estréia, nos anos 80, da versão idealizada pelo diretor. Peckinpah não transforma os duelos de seu filme em um momento sublime: eles são secos, sem opulência. São crus como é a visão de que tudo aquilo é passado, e nem então ele desiste de reconstruir o mito que mais simboliza o gênero americano.

O encontro entre Billy e Hoss, outro ex-colega que agora auxilia Garret na caçada aos ex-companheiros, reforça uma visão que, se não é romântica, expressa um profundo amor a essas tradições. De costas um para outro, Billy não empreende a tradicional contagem de dez passos antes de se virar para atirar. Vira-se desde o princípio e, arma em punho, espera seu ex-amigo virar-se (no oito!!!) para matá-lo à queima-roupa.

— Não foi no dez, Hoss — diz ele ao ex-colega caído.
— Nunca soube contar — responde Hoss.

Curiosamente, Bob Dylan, que quase forçou sua entrada no projeto por se identificar com o mito de Billy — ao passo que Peckinpah mostrou ser pouco ligado ao cenário musical na época por nem sequer saber quem era Dylan — não é ouvido em sua icônica Knockin’ on Heavens Door no momento em que os personagens síntese desse duelo morrem.

Essa honra cabe aos anônimos. Billy cavalga deixando para trás o corpo de Hoss ao som da música de Dylan, assim como o xerife Baker interpretado por Slim Pickens num dos mais belos momentos da história do gênero: a morte, para Peckinpah, que em muitos filmes merece a câmera lenta, é vista aqui da forma mais melancólica possível.

Batendo nas portas do céu. A morte, tão banalizada em outros filmes do gênero, é vista de forma triste e melancólica numa das mais belas cenas da história do gênero.

Baleado, sabendo ter seus últimos momentos de vida, sob a vista de Katy Jurado (de Matar ou Morrer, que Peckinpah resgatou para participar desse momento único), Baker caminha cambaleante para as margens de um pequeno lago para poder ver seu último pôr-do-sol. É quase como se pudesse ouvir Dylan clamando as batidas na porta do céu. Não há palavras, apenas olhares.

Às portas da morte, a sensação é a mesma que emana do filme inteiro: está tudo acabado. O sabor desse retrato decadente, quanto mais passa o tempo, mais forte fica, o que não é demérito algum. Pelo contrário: assim como acontece com os bons vinhos, a passagem do tempo apenas beneficia o filme de Peckinpah.

Para complementar, vale a pena botar os olhos nesse artigo da Cinephilia & Beyond

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