Paralelismo vs Alternância

Umdos elementos que mais me atrai — e me desafia — nos estudos do cinema ainda é a montagem, tanto pelo seu poder de mudar completamente os sentimentos do espectador a partir de uma simples mudança de ordem de planos quanto pela forma como dita o ritmo do que vemos ou consegue nos passar mensagens simbólicas a partir de uma simples contraposição visual.

Não confunda edição — processo mais básico, de corte e redução, no nível da duração do plano, que não deixa de ser uma decisão criativa que irá influenciar também na montagem — com montagem, processo que, em vez de subtrair, busca adicionar e que deve ser visto de cima para baixo.

Digamos que na edição você fala da forma como tijolo a tijolo compõem uma calçada e define o tamanho de cada um desses tijolos, enquanto para poder ver a montagem você precisa subir no telhado e, olhando de cima do prédio, ver como as calçadas da cidade se relacionam.

Sergei Eisenstein, que já atribulava seus pensamentos com as relações entre as cenas e os planos nos anos 20, formulando as primeiras teorias acerca da montagem junto com outros colegas construtivistas, como Pudovkin, Vertov e Kuleshov.

Um dos aspectos das teorias da montagem que sempre me causaram curiosidade diz respeito às diferentes formas com que muitos enxergam o significado da montagem PARALELA.

Tenho visto poucos fazerem uso da mesma terminologia que eu costumo usar quando abordo a montagem no cinema. A maior parte dos textos se refere de forma simplista à classificação de uma montagem abordando duas cenas em espaços diferentes, relacionadas de alguma forma. O modo mais usual de se chamar esse tipo de montagem é denominá-la de montagem paralela.

Assim, se em um filme temos um roubo a banco ocorrendo e ao mesmo tempo temos outra ação relacionada acontecendo em outro lado da cidade — a polícia sendo avisada e se movimentando para chegar até o banco — a maior parte dos textos chama essa montagem, que alterna entre esses dois espaços e ações de montagem paralela.

É nesses momentos que desce a vontade de poder bater um papo sincero sobre isso com quem assina o texto. Bem de boa, porque o que temos aqui não são verdades, mas abordagens. Façamos, então, uma breve recapitulação do que seriam essas duas classificações.

UMA SÓ DEFINIÇÃO?

Não são poucos os teóricos e críticos que adotam, de forma simplificada, o termo MONTAGEM PARALELA para abordar toda e qualquer montagem de cenas com ações distintas na narrativa.

David Bordwell, em A Arte do Cinema, faz uso dessa única definição, apontando que a montagem paralela “oferece, portanto, certa descontinuidade espacial, mas amarra a ação ao criar uma percepção de causa e efeito de simultaneidade temporal.”

Bordwell amplia sua definição apontando que esse tipo de montagem oferece ao espectador um alcance de conhecimento maior do que o de qualquer personagem. Porém, antes disso, ele menciona o termo para inferir acontecimentos que ocorrem separados no espaço e também no tempo, citando o exemplo das quatro histórias de Intolerância, de Griffith (pg. 362). Mas Bordwell opta ainda por criar os termos MONTAGEM ELÍPTICA e MONTAGEM SOBREPOSTA, classificações suas para analisar certas relações temporais.

William Phillips, em Film, an introduction, também não faz diferenciação em torno de como essas ações ocorrem e trata de unificar a definição:

“Na edição paralela, o filme vai e volta entre duas ou mais ações, também sugerindo que as ações estão ocorrendo simultaneamente e estão relacionadas, mas algumas vezes descrevendo eventos de tempos diferentes.” (p. 138).

Não é o suficiente, na minha opinião.

DANDO NOME AOS BOIS

Essa unificação das ações distintas em uma só definição sempre me incomodou, porque é possível visualizar diferentes relações espaciais, temporais e significativas na forma de montar um filme.

Grande parte dos teóricos classifica a montagem em dois tipos: Expressiva (rítmica e intelectual como sub-classificações) e narrativa- composta de quatro sub-classificações, a linear, a invertida, a paralela e a alternada.

Todos eles partem da classificação feita por Eisenstein (Métrica, rítmica, tonal, atonal e intelectual), mas até chegar nessa simplificação bem-vinda, outros teóricos, principalmente nos primeiros tempos do cinema — Balázs, Pudovkin e outros — buscaram classificar a arte de montar sequências com diferentes fins.

Estamos, aqui, falando especificamente de montagem narrativa, e para isso vamos buscar as definições de mais simples compreensão. É nas relações temporais e de significação que surge a distinção que me agrada, abraçada por teóricos como Gérard Bettón, Marcel Martin e Marie-Thérese Journot: a montagem narrativa paralela e a montagem narrativa alternada.

Enquanto bandidos realizam uma reunião para decidir como lidar com o assassino que fez as ruas ficarem cheias de policiais (à esq.), forças da lei se reúnem para decidir como lidar com o assassino que fez as ruas se tornarem inseguras para a população (à dir.) em “M, O Vampiro de Dusseldorf”. A montagem alternada contrapõe as discussões nas duas reuniões fazendo com que haja uma relação de causa e consequência, e há a impressão de que elas acontecem ao mesmo tempo. A grande questão: não seria possível fazer uma relação de comparação e simbolismo na cena, tornando essa cena uma montagem PARALELA?

Journot, em Vocabulário do Cinema, define a montagem alternada como “a forma de montagem que alterna os planos de duas ou mais sequências apresentando ações que se passam simultaneamente em locais diferentes.” Ela exemplifica de forma básica falando da clássica sequência básica entre perseguidor-perseguido, e amplia seu exemplo ao mencionar o momento em M, O Vampiro de Dusseldorf (1931) em que polícia e ladrões, em locais diferentes, realizam ações semelhantes: planejar a captura do assassino.

Diferente da alternada, a montagem paralela, para Journot, alterna série de imagens que não têm entre si qualquer relação de simultaneidade. “É discursiva, e não narrativa, utilizada para fins retóricos e de simbolização, para criar efeitos de comparação ou de contraste”.

Porém, há controvérsias, já que outros teóricos aceitam que possa haver simultaneidade temporal na montagem paralela, desde que o sentido de existir tal montagem de cenas tenha um caráter simbólico ou comparativo. A própria Journot lembra que a diferenciação, a princípio simples, é muito sutil.

Certas sequências alternadas são criadas com fins mais comparativos e simbólicos do que propriamente por relações de simultaneidade ou, como prefiro definir, de causa e consequência no percurso da ação narrativa. Nesse caso, não poderíamos rediscutir o próprio exemplo usado por Journot, no filme de Lang, já que mais do que ser claramente simultânea, a montagem parece trazer um comparativo simbólico?

Vamos adiante, buscando outros autores. É interessante nos apropriarmos da forma como Gerard Bettón define a montagem paralela: aproximação simbólica de várias ações com objetivo de fazer surgir um significado de sua justaposição. A simultaneidade temporal não é necessária. Marcel Martin, autor de um dos mais utilizados livros da área, A Linguagem Cinematográfica, acrescenta que a intercalação de fragmentos, na montagem paralela, precisa fazer surgir um significado de sua confrontação, também enfatizando a não necessidade de contemporaneidade das ações, mas aceitando que elas possam ser contemporâneas.

Partindo disso, então:

MONTAGEM ALTERNADA: ações com relações de simultaneidade temporal e/ou relações de causa e efeito sem constituição de nenhum tipo de efeito comparativo ou simbolismo.

Já deu para entender, então, que no cinema a maior parte dos filmes que constroem uma narrativa e mostram várias ações ocorrendo em diferentes espaços com diferentes personagens estão fazendo uso do que chamamos de montagem alternada. Filmes de ação como Duro de Matar — A Vingança, que em determinado momento alterna sua atenção para três ações simultâneas — Samuel L. Jackson confrontando o terrorista no navio, Bruce Willis enfrentando bandidos no porto e a polícia evacuando uma escola no outro lado da cidade — é um exemplo prático desse tipo de montagem narrativa.

Samuel L. Jackson confronta terroristas num navio, Bruce Willis num armazém do porto e a polícia evacua uma escola do outro lado da cidade. Três ações ocorrem simultaneamente, mas sem relações simbólicas, apenas interligadas entre si na narrativa. Exemplo claro de montagem alternada.
Hobbits dormem, enquanto Nazguls invademo quarto pronto para atacarem as camas. No fim da cena descobrimos que a montagem nos coloca, alternadamente, em dois locais diferentes, e nos engana. Mais uma vez, temos relação de simultaneidade temporal, mas sem simbolismos.

Também pode ser usada para enganar o espectador justamente através da percepção de que as ações acontecem ao mesmo momento, como é o caso da cena em O Senhor dos Anéis — A Sociedade do Anel em que os Nazgul invadem a pousada em Bree, na qual os hobbits estão hospedados, para matá-los.

A alternância de plano a plano se dá entre ações que acontecem ao mesmo tempo, mas em lugares separados, dando a impressão de que estão todos os personagens no mesmo quarto. Ao final da cena, descobrimos o engodo criado pelos hobbits. A montagem alternada entre esses dois espaços engana a plateia de forma inteligente. Então, na montagem alternada, percebam, a simultaneidade temporal é OBRIGATÓRIA.

MONTAGEM PARALELA : ações que podem ou não ter relações de simultaneidade temporal e busca a construção de um significado, comparação ou contraste a partir de sua construção. É aí que a coisa pode complicar um pouco.

Aragorn “lê” os sinais da luta na noite anterior e narra o que aconteceu aos hobbits, enquanto a montagem nos mostra o que ocorreu simultaneamente à ação de Aragorn no dia seguinte. Ações separadas no tempo em uma montagem paralela, no nível da cena.

Primeiro, estabeleçam o seguinte: se alternamos duas ações separadas no tempo, como por exemplo as transições entre as duas histórias contadas em O Poderoso Chefão Parte 2 — as histórias de Vito no começo do século e Michael, 40 anos depois — estamos, necessariamente, tratando da montagem paralela, independente dessas relações estabelecerem algum tipo de metáfora ou simbolismo.

A cena em O Senhor dos Anéis — As Duas Torres em que Aragorn traça o rastro dos hobbits sequestrados é outro exemplo: à medida que ele narra o que imagina, vemos também cenas do que ocorreu na noite anterior. Em ambas, temos uma montagem paralela, por ações separadas no tempo. No primeiro caso, a montagem atuando em nível mais amplo, alternando longas sequências, onde a transição desempenha papel fundamental — coisa que vamos estudar detalhadamente em outro texto. No segundo caso, a montagem atua em nível mais restrito, dentro de uma sequência de perseguição aos Orcs.

Intolerância, de Griffith, é um exemplo clássico da montagem paralela que age na diferença temporal — e também no simbolismo — já que as quatro histórias contatas por Griffith, em diferentes momentos da história da humanidade, são unidas pelo mesmo tema: a intolerância humana.

A capacidade de interpretação de quem estuda o cinema é necessária para estabelecer a classificação, então, quando essas relações acontecem com simultaneidade temporal.

Muitas vezes, porém, há até mesmo relações de causa e consequência entre as cenas, mas o que move a montagem é mais a comparação e o simbolismo do que propriamente essas relações.

Vamos exemplificar a montagem paralela em ações de contemporaneidade usando A Lista de Schindler, de Spielberg. Não há uso de flashbacks no filme, o que significa que todas as ações acontecem na mesma época da história — mesmo que, muitas vezes, não no mesmo momento exato.

Na primeira cena que vamos ver, temos o momento em que um casal de judeus ricos é expulso de casa e, imediatamente depois, Oskar Schindler entra na casa do casal para tomar posse dela. Enquanto Schindler conhece seus novos aposentos, o casal de judeus é enviado ao gueto e conhece o quarto onde terão de morar.

Oskar conhece sua nova casa, entrando nela pouco depois dos antigos donos serem expulsos para o gueto. Enquanto o empresário nazista conhece seu novo espaço, os antigos donos conhecem seu novo e apertado quarto. As ações ocorrem simultaneamente, mas o sentido aqui vai além da ligação temporal, e aborda comparação e simbolismos. É uma montagem paralela, mais do que alternada — mas não deixa de ser, também, alternada. Entendeu o tamanho da bronca quando se trata de teorizar o cinema?

Em um primeiro momento, tendemos a classificar a montagem aqui como alternada, já que essas duas ações acontecem ao mesmo tempo. Porém, percebemos, logo, um sentido comparativo e simbólico entre essas duas ações simultâneas: enquanto Oskar deita-se na grande cama de casal e estira-se, afirmando que “Não podia ser melhor”, a esposa judia, longe dali, vislumbrando o pequeno quarto em que ficarão confinados, exclama que “podia ser pior”.

Continuamente alternamos entre Schindler e sua nova e espaçosa casa, e o casal judeu, despejado e antes rico, confinado no pequeno espaço em que estão. Não se trata de uma relação de ações impactando uma nas outras, mas de um efeito comparativo. Por isso, poderíamos classificar a montagem aqui como PARALELA, e não alternada.

No mesmo filme, temos o momento em que Amon Goeth quase se deixa levar pela paixão reprimida que sente pela sua empregada judia. Aparentemente, ao mesmo tempo, Schindler participa de uma festa e no campo de concentração de Goeth ocorre uma cerimônia de casamento judeu. A montagem irá alternar, então, entre:

a) Goeth passando a mão na empregada, enquanto mulheres passam a mão em Schindler;

b) os noivos judeus quebrando uma lâmpada durante a cerimônia, enquanto, ao mesmo tempo em que o pé pisa na lâmpada, vemos Goeth bater no rosto de sua empregada;

c) Goeth espancando violentamente sua empregada, fazendo sair sangue de sua boca enquanto ao mesmo tempo alternamos para Schindler levando beijos na boca das mulheres da festa.

Goeth passa a mão em sua empregada, enquanto o mesmo gesto ocorre com Schindler, mas com outra conotação. Quando pés quebram a lâmpada no casamento judeu, Goeth esbofeteia sua empregada. O beijo de Oskar nas mulheres na festa se contrapõe à boca sangrando da empregada.

Ao final da cena, descobrimos que nem todas as ações acima foram exatamente simultâneas — descobrimos que Goeth estava na festa com Schindler — o que não muda o fato de que, mesmo se fossem simultâneas, a montagem de uma cena a outra buscaria um efeito simbólico comparativo, e não de relações espaciais e temporais entre os diferentes espaços. Sendo ou não simultâneas, esse sentido simbólico e comparativo torna essa montagem PARALELA.

E a cena que melhor ilustra a montagem paralela, talvez, seja a sequência inicial — o filme inteiro, na verdade — de As Horas, em que vemos as três personagens principais, protagonistas de suas ações em três diferentes épocas, realizando ações, cada qual em seu tempo, semelhantes, estabelecendo o tom da narrativa que irá, continuamente, comparar as três histórias, apesar delas nunca se cruzarem.

A dona de casa que lê o livro de Virginia Woolf, a própria Virginia Woolf e uma mulher nos tempos contemporâneos que é a própria encarnação da personagem do livro de Woolf. Em As Horas, três personagens vivendo em 3 épocas diferentes têm suas trajetórias constantemente comparadas de forma simbólica — como mostra a série de transições entre os três tempos mostrando os vasos de flores de cores diferentes. Só por ser em tempos diferentes, já podemos considerar a montagem como paralela. O simbolismo só reforça a classificação.

Essa discussão de definição, porém, muitas vezes não afeta o montador, e mais o teórico. Walter Murch, por exemplo, em seu fantástico Num Piscar de Olhos, sequer se dá ao trabalho de discutir a terminologia para essas aproximações, assim como vários teóricos de correntes neo-formalistas que publicam obras de compreensão da linguagem cinematográfica a partir da desconstrução de cada um de seus aspectos.

Parece incomodar, mesmo, aos mais perfeccionistas ou aos malucos que decidem se dedicar a desvendar frame a frame o que esses artistas também malucos têm feito ao longo dos últimos 100 anos. Vou seguir usando a distinção entre alternância e paralelismo — pelo simples motivo de que, quanto maiores as possibilidades de abordagem, maior o número de diferentes facetas passíveis de exposição no que diz respeito a arte tão complexa — e um pouco maluca, tudo bem.

Uma arte, inclusive, que muitos poucos reconhecem como arte. Só que aí a gente já entra num assunto que fica para uma outra ocasião.

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