Rastros de Ódio: um dilema americano (tradução)

Tradução das páginas 27 a 30 do texto “Estruturalismo e Semiótica” do livro What Is Film Theory, de Richard Rushton e Gary Bettinson

Enquanto o ensaio de Raymond Bellour sobre Os Pássaros foi publicado em 1969 e o ensaio do Cahiers sobre A Mocidade de Lincoln foi publicado em 1970, o artigo de Brian Henderson sobre outro filme de John Ford, Rastros de Ódio (1956), foi publicado mais de 10 anos depois, em 1981. Henderson também é um dos principais contribuidores para os debates sobre o artigo do Cahiers, a ponto de afirmar que, em sua metodologia, apresenta uma crítica à aplicação do estruturalismo ao estudo do cinema (ver Henderson 1973; 1973-74).

Enquanto a análise de Bellour sobre Os Pássaros é, em grande parte, livre de uma consideração das circunstâncias históricas, e a análise do Cahiers leva em conta uma limitada aceitação de fatores históricos, a leitura de Brian Henderson está muito preocupada com questões de história. De muitas maneiras, seu artigo é uma tentativa de explicar o período histórico específico em que Rastros de Ódio foi produzido e lançado. O título do artigo, ‘Um dilema americano’, refere-se ao livro de Gunnar Myrdal ([1944] 1962), An American Dilemma, que atribui aos EUA um dilema particular e contínuo: o dilema da desigualdade entre brancos e negros. Já podemos começar a ver algumas evidências de uma metodologia estruturalista no artigo de Henderson: onde, superficialmente, Rastros de Ódio é um filme sobre o conflito entre americanos brancos e índios norte-americanos, em um nível mais profundo – no nível da estrutura – a importância do filme reside em ser um conto de conflito entre americanos brancos e negros. Pode-se chamar os americanos negros de uma ‘ausência estruturante’ em Rastros de Ódio.

Em um nível, Henderson observa abertamente a semelhança entre o conteúdo de Rastros de Ódioe os tipos de tópicos estudados por antropólogos como Lévi-Strauss: parentesco, raça, casamento e relações tribais. E a leitura de Henderson é fortemente influenciada pelas metodologias Lévi-Straussianas, especialmente no que trata o filme como um mito que tenta reconciliar um conflito social. No cerne do conflito social em Rastros de Ódio- a oposição entre brancos e índios – Henderson encontra uma oposição abrangente: entre Debbie Edwards (Natalie Wood) e Martin Pawley (Jeffrey Hunter). Debbie é uma mulher branca que foi ‘adotada’ por uma tribo indígena, enquanto Martin é parte índio, que foi adotado por uma família branca. Assim, o filme pode ser visto como aquele em que há uma troca entre raças: o que acontece quando uma pessoa branca se integra a uma tribo indígena e o que acontece quando um índio é assimilado pela sociedade branca? Henderson complica ainda mais essas questões ao reformular a oposição entre índio e branco em outro nível: a oposição mais fundamental é entre ser parente por sangue e ser parente por adoção. Nem Martin nem Debbie têm o sangue ‘puro’ das sociedades em que agora vivem, então como as sociedades lidam com membros que não têm sangue puro?

Enquanto o filme trata dessas questões, há um personagem por meio do qual essas questões são articuladas de maneira profunda e ambígua: Ethan Edwards (John Wayne). Ethan desconfia profundamente da suposta assimilação de Martin à família Edwards. Essas suspeitas ficam evidentes pela relutância de Ethan em aceitar Martin à mesa do jantar da família no início do filme, e ele zomba de Martin ao longo do filme, às vezes o chamando de ‘cabeça de cobertor’ ou ‘mestiço’. E, no entanto, ao mesmo tempo, ele não se opõe à ideia do casamento de Martin com Laurie Jorgenson, a filha branca de uma família vizinha. Em relação a Debbie, ao longo do filme, Ethan está determinado a matá-la, pois seu sangue foi contaminado pela associação com uma tribo indígena. ‘Ela tem vivido com um índio!’ ele declara em certo momento. No entanto, novamente, no final do filme, ele poupa Debbie e a devolve à sociedade branca. Na personagem de Ethan é cristalizado o dilema das relações entre índios e brancos em Rastros de Ódio.

Henderson argumenta, no entanto, que Rastros de Ódioé um filme sobre relações entre índios e brancos apenas em sua superfície. A história superficial serve para encobrir o dilema genuíno que está no cerne do filme: relações entre negros e brancos na sociedade dos EUA. Por que Henderson pensa assim? Ele lê o filme dessa maneira porque, na época em que o filme estava sendo produzido, um dos problemas políticos centrais que confrontava a sociedade americana era o das relações entre negros e brancos. Mais especificamente, essas questões estavam no centro da consciência nacional devido à decisão da Suprema Corte, em 17 de maio de 1954, no caso Brown vs. The Board of Education of Topeka. Essa decisão decretou que a segregação de estudantes negros e brancos em escolas era inconstitucional, abrindo assim caminho para a dessesgregação da sociedade dos EUA de maneira geral. Como o governo temia que a implementação completa e imediata da decisão da Suprema Corte pudesse levar a distúrbios civis graves, a adoção da decisão foi adiada por um ano para facilitar o debate público. Portanto, durante 1954-55 – precisamente o período em que Rastros de Ódio está sendo planejado e produzido – a questão da dessesgregação e das relações entre negros e brancos era uma questão pública acalorada nos Estados Unidos.

Henderson destaca as mudanças importantes feitas no roteiro durante esse período (1954-55), pois há diferenças muito significativas entre o romance de Rastros de Ódio, escrito por Alan LeMay e publicado em 1954, e a versão final do filme. As diferenças mais significativas são:

• No romance, Martin é 100% branco, enquanto no filme ele é um oitavo cherokee.

• No filme, Martin se infiltra no acampamento dos índios, mata seu líder, Scar, e liberta Debbie. No romance, no entanto, ele apenas cavalga com o resto dos rangers e descobre que Debbie já foi embora.

• No filme, Ethan encontra e resgata Debbie. No romance, por outro lado, Ethan é morto na batalha final. Debbie, entretanto, no romance, não é descrita como uma das esposas de Scar, ao contrário do filme. Finalmente, no romance, Martin encontra Debbie e a abraça, como se fosse fazê-la. Laurie Jorgenson, no romance, se casou com outro homem (Charlie McCorry) muito antes. O final do filme é, portanto, notavelmente diferente do do romance.

O filme de Rastros de Ódio enfatiza, assim, a oposição entre relações por sangue e relações por adoção de maneiras que o romance não faz. Ethan, em grande parte, está determinado a manter relações por sangue, que é a base para seu desejo de matar Debbie e para sua contínua zombaria de Martin. Ethan acha tremendamente difícil reconhecer relações por adoção. Portanto, argumenta Henderson, ‘a insistência de Ethan em linhas de sangue literais na determinação de parentesco, seus privilégios e obrigações, é historicamente a posição do segregacionista e supremacista branco’ (1985: 446). A posição de Ethan, portanto, está de acordo com as seções da população americana contrárias à decisão Brown e, portanto, contrárias ao reconhecimento da igualdade entre negros e brancos. Henderson conclui: O racismo sempre foi imoral e antidemocrático, mas Brown tornou algumas de suas instituições fundamentais ilegais… Após Brown, opor-se à possibilidade de parentesco por adoção, afirmar parentesco apenas por sangue, coloca alguém fora da lei. Assim, a exclusão de Ethan da comunidade no final do filme é determinada por sua estrutura inconsciente. (1985: 447) O que Henderson chama de ‘estrutura inconsciente’ do filme – a ausência estruturante da oposição entre negros e brancos na sociedade dos EUA – é um resultado de sua metodologia estruturalista. Ao mesmo tempo, no entanto, para Henderson, nem tudo no filme pode ser explicado e contido de maneira unificada. Mesmo que Ethan seja revelado como racista, ou pelo menos como representante das atitudes racistas do sul americano, ele é tratado com grande simpatia pelo filme. Ele é, sem dúvida, o herói do filme; ele não é uma figura odiada, mas é, ao contrário, uma figura de grande afeto, mesmo que se reconheça a natureza difícil e até contraditória de seus motivos e crenças. A simpatia que temos por Ethan é um dos melhores atributos do filme, afirma Henderson, e Ethan encapsula as complexidades e tensões do debate em torno da decisão Brown durante os anos de meados da década de 1950 nos Estados Unidos.

Finalmente, Rastros de Ódio é fundamentalmente construído sobre um desequilíbrio. O filme efetivamente declara que é aceitável que não brancos se assimilem à sociedade branca – como ocorre com Martin – mas sob nenhuma circunstância a perspectiva da assimilação do branco na sociedade não branca deve ser tolerada; ou seja, as únicas opções consideradas para Debbie são seu retorno à sociedade branca ou sua aniquilação, e a aparente loucura que se abateu sobre outros brancos capturados pela tribo de Scar indica que os únicos resultados para brancos em uma sociedade não branca são totalmente negativos. Além disso, para que Martin seja aceito na sociedade branca, ele precisa provar que renunciou a quaisquer vínculos que possa ter tido com a sociedade não branca – ele deve se provar ‘totalmente branco’. Assim como o artigo de Bellour sobre Os Pássaros e o artigo da Cahiers sobre A Mocidade de Lincoln, Henderson consegue desenterrar uma riqueza de material delicado de Rastros de Ódio. Como cada um dos artigos examinados neste capítulo, as conclusões feitas por Henderson não são aquelas que dependem de entendimentos explícitos ou necessariamente ‘conscientes’ dos filmes ou sequências em questão. Em vez disso, o estruturalismo visa descobrir um nível mais profundo de compreensão, um nível que pode estar em desacordo com nossas compreensões explícitas e conscientes do material cinematográfico. Essas descobertas estão de acordo com a crença estruturalista de que a verdadeira natureza científica de sistemas de signos e sistemas de significado são aquelas que estão abaixo da superfície das coisas, pois é apenas ao mergulhar abaixo da superfície que se pode encontrar as maneiras definitivas pelas quais as coisas se estruturam.

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