Lições de Linguagem: a sintaxe do filme

Sabemos ler uma página – em inglês, da esquerda para a direita e de cima para baixo – mas raramente temos consciência de como lemos precisamente uma imagem.

Diferente da literatura, o filme não tem gramática. É a sintaxe do filme – o arranjo sistemático dessas convenções a partir das necessidades de seu autor – que as ordena e indica ao espectador as relações entre elas. Assim como acontece com as línguas escrita e falada, a sintaxe do filme é o resultado de seu uso contínuo e repetitivo. A sintaxe do filme é um desenvolvimento orgânico que mudou consideravelmente ao longo dos anos – continua, e continuará mudando.

Na icônica cena do assassinato no chuveiro de “Psicose” o todo é maior do que a simples soma das partes. Setenta tomadas juntas formam uma unidade que constrói uma ideia sem precisar expô- -la gratuitamente – a violência aqui é mais PERCEBIDA do que VISTA, uma sutileza única de um diretor como Hitchcock

Metz, semiólogo do cinema, já dizia que o cinema é feito de uma série de sentenças, assim não pode ter um dicionário de expressões e sinônimo. Apesar de certamente existirem regras de uso, estas não são nem tão estritas nem tão complexas quanto as da linguagem verbal. Não há nenhum sistema ordenador que determinaria como as tomadas deveriam ser combinadas em sequência. Nem tampouco há um paralelo entre a função de uma única tomada num filme e aquela de uma palavra ou sentença na comunicação escrita ou verbal. Uma única tomada pode durar alguns minutos, o que talvez seja o equivalente a todo um capitulo de romance. Nem entramos aqui nos chamados filmes-sequência, rodados com um só plano.

No entanto, é comum o uso do termo “gramática do cinema” em um sentido único à linguagem cinematográfica, o de arquitetar, de forma mínima, alguma relação entre os seus elementos componentes. Então, se há uma gramática do cinema, ela é mínima e funciona assim:

Primeiro, cada tomada está relacionada aquelas que Ihe são contiguas. Enquanto assistimos a um filme, geralmente retardamos nossa compreensão de uma tomada até vermos a próxima. Quando vemos uma personagem dirigindo-se a outra que está em off, nossa opinião sobre a importância dessas palavras talvez tenha de esperar até aparecer a próxima tomada mostrando a pessoa com quem se fala…

Segundo, diferentemente da sintaxe da língua escrita, que em grande parte é explicitamente regulada pela cultura, as relações entre as tomadas num filme têm de ser construídas mediante conjuntos menos estáveis de convenções. Muito depende da “competência” do público em entender esse conjunto de ações contíguas, mas também da capacidade do cineasta de construir relações que não sejam governadas pela convenção pura e simples A construção de uma relação entre tomadas pode ser o primeiro momento na compreensão de um filme narrativo. Portanto, no cinema, como na palavra escrita, o todo é maior do que a soma das partes.

O notório assassinato na sequência do chuveiro em Psicose é um excelente exemplo desse fenômeno. Setenta tomadas separadas em menos de um minuto de tela são fundidasbpsicologicamente em uma experiência contínua. Ainda que não vejamos em detalhes uma faca cortando o corpo da vítima, a sensação é de violência. O todo é maior do que a soma de suas partes.

Como qualquer linguagem, a linguagem cinematográfica depende, como já dissemos, de convenções: uma forma padrão e comumente compreendida de fazer algo. As convenções da linguagem cinematográfica representam uma espécie de acordo entre o cineasta e o público sobre o elemento mediador entre eles: o próprio filme.

Porém, sem inovações – maneiras novas e até então desconhecidas de aplicar a linguagem cinematográfica – essas convenções úteis não existiriam. Portanto, às vezes esse acordo deve ser quebrado, ou pelo menos dobrado, quando um cineasta inovador busca novas maneiras de transmitir significado e experiência (e aqui entra em cena um conceito que veremos mais adiante, o do ESTRANHAMENTO do público para com essas convenções novas ou pouco usuais).

A cena em O SHOW DE TRUMAN (1998) em que Christoff, diretor do reality show, “dirige” em tempo real o reencontro de Truman com o pai, escolhendo posições de câ- mera, ângulos e o momento certo de entrada da trilha sonora, é um exemplo do processo que acontece em todos os filmes – a única diferença é que ele não ocorre em tempo real, mas somos levados a nos emocionar, temer ou ficar tensos pelos mesmos princípios. Somos seres responsivos a estímulos…

O uso dos flashbacks é um bom exemplo de convenção que surge a partir de quebras. Em algum momento da história do cinema, foi preciso criar alguma estratégia para as pessoas entenderem que o que elas viam era uma lembrança ou algo acontecido antes do tempo da narrativa. Normalmente, isso se dava com mudanças no espectro de cor, com uso de vinhetas escuras nas laterais, com algum efeito de transição – que podia vir acompanhado de um som. Enfim, estratagemas para avisar “olhe, a partir de agora, isso é uma lembrança do passado”. Hoje esses recursos são dispensáveis porque os espectadores já conhecem convenções narrativas mais diretas que permite que eles entendam, em questão de segundos, que o que estão vendo é uma ação que se desenvolve em outro tempo. E você é capaz de assimilar cada uma dessas permutações em constante evolução, porque anos de prática assistindo a filmes o tornaram um consumidor ágil da linguagem cinematográfica.

E mesmo uma vez estabelecida, cada convenção está aberta a mais inovações e interpretações. Nós, do lado de cá, somos literalmente manipulados para sentir o que sentimos. Para chorar, para nos irritarmos, sentirmos medo, darmos risada.

Uma cena de O SHOW DE TRUMAN mostra o que é um diretor planejando a melhor maneira de nos atingir do lado de cá. Enquanto ele organiza o reencontro do filho com pai, em frente a uma audiência de milhões de pessoas, ele decide quais câmeras, que enquadramentos e em que momento a música deve agir. Ele manipula não apenas Truman, que acha estar vivendo uma vida de verdade, mas a audiência do lado de lá da tela.

Como no filme de Peter Weir, tudo o que nós sentimos aqui é resultado de um planejamento. Um filme pode consumir dezenas ou centenas de milhões de dólares, pode envolver milhares de pessoas. Não dá para acreditar que aquilo que você vê na tela é resultado de acidentes

Um filme é um processo ARTÍSTICO, ele está sendo mostrado da maneira como recebemos propositalmente.

(Trecho das páginas 28 a 30 do Livro Ilustrado do Curso Online, também abordado em vídeo-aulas do curso)

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